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segunda-feira, 31 de maio de 2010

OEIRAS IV

Corre que os oeirenses não gostam de Jose Antônio Saraiva, o garotão baiano que passou os pés no pessoal da antiga Mocha e cantou a sede do governo do Piauí na Chapada do Corisco, uma fazenda de gado sujeita a raios e trovoadas, a futureira e boa Teresina das curicas e das pipiras, que eram cablocos de dar o que falar. Operárias domésticas e operárias da fábrica de tecidos, gostosas tanto, nas tipóias como nos jiraus.

Bons sujeitos os oeirenses, mas foi o jeito entregar os couros a Saraiva, perito na puxada de saco quando, para que lhe aprovassem o ato heróico, batizou a nova cidade com uns bonitos arranjos do nome da imperatriz Teresa Cristina, reinante na época.

Gosto dos oeirenses espoliados em favor do desenvolvimento da Província com a aproveitação do rio Parnaíba, caudaloso e cheio de cantiga dolente. Tenho a gente da Mocha em boa conta. Aprecio Leopoldo Portela, cidadão de inteligência aprimorada, orador e poeta sinceramente lírico. Era monsenhor católico de muita sabença, mas largou as vestes de saia, o latim, o missal para satisfazer os atrativos de moça bonita e educada. Entregou-se também ao magistério universitário.

Nos fins dos anos 70 e princípios da década de 80, Dagoberto Ferreira de Carvalho Júnior iniciou a obra de me catequizar para instantes cívicos de Oeiras, no mês de janeiro, quando os oeirenses não esquecem o visconde da Parnaíba, uma das muitas relíquias preciosos do passado da ex-capital, administrador, lutador, possuidor de gado, louco por amigação, com as mulatas bundudas dos seus territórios, que ele deglutia para a fabricação intensiva de molecotes bastardos.

Dagoberto Júnior escreve poemas de bom gosto. Poeta de quatro em quatro anos. Gosta mais de cheirar a história, papéis velhos, madeira pintada de antigos oratórios caseiros, imagens de santos, altares e retábulos. Conhece em profundidades becos, ruas e praças da sua cidade. Historiador e intérprete da história politica e social do povo do sertão de dentro e do Piauí. Pesquisador plural. Sabe de padres e de bispos que pastorearam os recantos piauienses. Grande talento fundou o Instituto Histórico de Oeiras, entidade acreditada e aplaudida.

Oeiras tem ajudado com muita peça a boa vida cultural da terra e do povo do Piauí.

A. Tito Filho, 10/05/1989, Jornal O Dia. 

OEIRAS III

Fui a Oeiras, numa quarta viagem, ao tempo em que exerci o cargo de Secretário da Educação, em 1970. Conheci gente prestigiosa e ilustre. Fiz o que estava a meu alcance em benefício da comunidade no setor educacional.

Ainda estudante, no Rio, tive saudosa convivência com Raimundo José do Nascimento, conhecido pelo apelido de Panta, irmão de outra raça. Coração de bondade. Agora reside em Fortaleza e quando me visita nesta Teresina me traz um abração acompanhado de bom livro. Não esqueci da velha amizade de Nantilde Sá Melo, oeirense ilustrada e culta, professora dedicada no Colégio Estadual do Piauí no tempo em que dirigi o educandário.

Ao retornar do Rio, depois de cinco anos de estudos, a meu lar teresinense, ano de 1947, janeiro, uns três meses depois estava eu de namoro e quase noivado com uma loirinha de Oeiras, graça, sonho, embevecimento dos meus vinte e poucos anos. Ainda hoje não sei quem lucrou e quem perdeu na desmantelação do futuro casório. Sei bem que passamos os dois uns tempos saudosos e sem alegria.

No governo Helvídio Nunes, de 1966 até final em maio de 1970, a Secretaria da Educação teve o titular Balduíno Barbosa de Deus, de imensos recursos de inteligência, ainda embatinado. Era padre católico, orador de palavra fácil e arrebatadora. Culto. Poeta de valor. Mandou fazer concurso digno para o magistério secundário, fato que me fez seu admirador. Dizem que nesse tempo o cidadão ilustre tinha namorada, a sua secretária, moça de raros predicados morais, depois esposa de grande dedicação. Substituí Balduíno na Secretaria.

Acho que no fim da década de 70 para o início dos anos 80 retornei de visita à antiga e hospitaleira ex-capital do Piauí. Depois eu conto a história.

A. Tito Filho, 09/05/1989, Jornal O Dia. 

domingo, 30 de maio de 2010

OEIRAS II

Conheci Oeiras na década de 40, quando por terra, me dirigia ao Rio, para estudos. Novinho em folha. Nada eu sabia sobre a história desse cenário histórico onde o Piauí nasceu para a vida politica e social. Também nos estudos secundários nada me tinham ensinado. Os professores nunca falaram do Visconde da Parnaíba, Fidié, dia 24 de janeiro e tantos fatos passados na antiga capital. Em 1947, passei por Oeiras. Vinha do Rio, em companhia de Tibério Nunes, que ficou na cidade, Fenelon Silva, Álvaro Ferreira Filho e Mariano Mendes, que comigo prosseguiram viagem (no) rumo de Teresina. Era tempo da empolgante campanha de Rocha Furtado como candidato ao governo do Piauí. Em dois anos de residência na capital do Ceara, tornei-me amigo de Antonio Santana, oeirense, mais velho do que eu, a quem me afeiçoei. Magnífico caráter. Generoso. Boníssimo. Inteligente e criterioso. Nas pensões estudantis do Rio de Janeiro, aprendi a admirar três oeirenses cuja amizade me honrei e honro, jovens leais, companheiros de convívio decente e correto: Tibério Nunes, Petrarca Sá, mortos queridos, e o de nome Luiz Walmor Barbosa de Carvalho, que para mim não possui defeito. Sempre na vida me orgulhei das merecidas vitórias dos três. Retornei a Oeiras em 1950, na companhia do candidato a deputado federal Vitorino Correia. Conversei com o impoluto Pedro Sá e o notável líder Rocha Neto. Na Constituinte piauiense de 1947 conheci dois oeirenses de valor como cidadãos de vergonha, Orlando Carvalho e Miguel Oliveira. Quando secretário da Educação do Piauí, nos idos de 1970, conheci uma mulher ilustrada, competente, de rara capacidade de trabalho, que muito me ajudou e a quem dedico admiração e afeto, chamada Rita de Cássia Campos, irmã de um poeta que tanto alteou a poesia oeirense. Depois eu conto mais. Oeiras para mim vale um chão bendito, e a gente deve orgulhar-se da terra de nascimento.

A. Tito Filho, 06/05/1989, Jornal O Dia.

OEIRAS I

O território de Oeiras pertenceu a Pernambuco, mais precisamente à paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Rodelas, ou Cabrobó. Aí se levantou a capela sob invocação de Nossa Senhora da Vitória, cuja sede estava na povoação que nascia conhecida pelo nome de Mocha. Era o ano de 1697. A instalação da vida deu-se em 1717. Ano de 1733 fundou-se a matriz de Nossa Senhora da Vitória, a primeira igreja regular do Piauí, para o que se demoliu a velha capela do arraial ou fazenda Cabrobó. Em 1761 Mocha tomou o nome de Oeiras, em homenagem ao conde do mesmo nome, depois marquês de Pombal. Em 1762 passou a cidade e capital da capitania. Nela residiram e administraram os governadores nomeados por Portugal. O primeiro governo independente se estabeleceu a 24 de janeiro de 1823, com o Piauí-Província e a longa administração do Visconde da Parnaíba. Em 1835, funcionou a primeira Assembléia Legislativa. Capital da Província até 1852, com a fundação de Teresina.

Berço de ilustres figuras políticas do Império. Parlamentares e jornalistas de nomeada participaram de sua história. Nas letras oeirenses, enalteceram a vida intelectual do Piauí vultos como Clodoaldo Freitas, Pedro Brito, Nogueira Tapety, Leopoldo Ferreira, Benjamin Batista, Vidal de Freitas, Bugyja Brito, Possidônio Queiroz. Entre os novos contam-se Petrarca Sá, O.G. Rego de Carvalho, Balduino Barbosa de Deus, José Expedito Rego, Dagoberto Júnior, Pedro Ferrer, Alvina Gameira.

Já escrevi que em Oeiras se passaram os episódios primeiros da vida social e política do Piauí. Por ela começou a saga do desbravamento. Berço da religião católica em terras piauienses. Cheira a passado. Relíquia de civismo. Recolhe também a memória dos amores madrugadinos do seu maior reprodutor, o patriota Manuel de Sousa Martins, tangedor e dono de gado, de vastos cabedais, experiência e sabedoria. Sertão bruto, de chão glorioso, onde jazem heróis verdadeiros. A cidade vale uma peça lírica do passado, nascida nos sertões de dentro, com a bravura de supostos vácuos sem fim e solidões insolentes. Monumento nacional, guarda perenemente as tradições do Piauí.

A Tito Filho, 05/05/1989, Jornal O Dia.

AS LIÇÕES DO PASTOR

Ano de 1956. Teresina vive constantes e graves problemas humanos e urbanísticos, sem esgotos, sem asfalto, água canalizada e energia elétrica escassas, mendicância generalizada, modesta rede hospitalar, moradias subumanas nos bairros sem transporte, infância desvalida, desnutrição, fisionomias envelhecidas pela fome. Pauperismo no Piauí todo, excetuada pequena parcela do povo. Subemprego e desemprego.

Pálida assistência aos abandonados começou no governo Leônidas Melo, na capital. Pouco se cuidava das tarefas assistenciais, exceto as de caráter paternalista, da esmola em dinheiro, sopas dos pobres, roupas velhas.

Existem ainda aspectos desafiadores, mas de vez em quando surgem espíritos fortes que os enfrentam e plantam as sementes de uma sociedade mais justa, para participação de todos nos bens primários da vida, como pregava João XXIII.

*   *   *

Junho de 1956, Teresina acolhia novo arcebispo, vindo do Bispado de Petrolina, em Pernambuco, - Dom Avelar Brandão Vilela, alagoano de nascimento. No ano anterior havia morrido Dom Severino Vieira de Melo, pastor rigoroso, intransigente nas decisões e na defesa dos princípios morais a que os piauienses deveriam guardar obediência. Tão severo que recusou participação nas festas do 1º Centenário de Teresina porque do programa constava a exibição da artista Elvira Pagã, projetada pela nudez em público. Os mentores dos festejos recuaram e desistiram de contratá-la.

*   *   *

Tardezinha, Dom Avelar mereceu homenagem dos teresinenses, em calorosa recepção. Orador de extraordinários recursos, o arcebispo disse que vinha pregar o Evangelho, cuidar das almas, confortá-las, mas pretendia humanizar a vida, assumindo as responsabilidades de dar assistência aos que desta necessitassem.

Aceitou os desafios. Lutou com os instrumentos da inteligência, da coragem e da fé. Instituiu a Faculdade Católica de Filosofia, para melhorar o magistério do ensino secundário, - obra educacional significativa; promoveu o 1º Congresso Eucarístico do Piauí, definindo diretrizes para o homem cristão; fundou a Rádio Pioneira, instrumento de comunicação permanente da Arquidiocese com a coletividade.

Não esqueceu a promessa de humanizar - e surgiu a Ação Social Arquidiocesana (ASA). - que se projetou nos bairros pobres e sofredores, por intermédio de centros de trabalho coletivo, de clubes de mães, de núcleos profissionalizantes. Os exemplos do pastor frutificavam: o governo dava os primeiros passos sérios na ajuda social aos desvalidos.

Indiferente aos resmungos e aos insultos de interesseiros sem entranhas, advogou a propriedade da terra para os que nela trabalham e labutam.

Combateu o bom combate. Consciências adormecidas pela rotina despertaram. Paciente, calmo, Dom Avelar distribuiu conselhos úteis e gestos de bondade. Suavizou padecimentos.

*   *   *

Em maio de 1971, depois de quase quinze anos a serviço do Criador e da sua criatura, o Pastor amigo e sincero se despediu do Piauí, para o cardinalato na Bahia.

A Casa de Lucídio Freitas, que ele dignifica, junto ao Clero, lhe prestou as homenagens do agradecimento e da saudade, na palavra do presidente da instituição, relembrando as lições do Pastor verdadeiro. No agradecimento, afirmou o novo cardeal, que, ainda distante, na sede do seu novo pastoreiro, continuava, anos fora, solidário com os piauienses, nos instantes felizes como na hora dos sacrifícios.

Nos 50 anos de sacerdócio de Dom Avelar, que se comemoram com entusiasmo, a Academia Piauiense de Letras relembra as lutas do seu titular ilustre, em beneficio da dignidade do homem piauiense.


A. Tito Filho, 8-9/12/1985, Jornal O Dia.  

sábado, 29 de maio de 2010

TEMPO DE FRUTAS

Ninguém mais se lembra de Job Vial, de crônicas saborosas sobre esta Teresina deformada. Job Vial outro não se era Joel Oliveira, pesquisador, humorista, colecionador de estórias de gente e de bichos da cidade a que ele dedicava afeição permanente. Busquei-o agora nos meus arquivos e reli "Quintas e Quintais", numa das recordações de Joel - e nessa crônica está o teresinense preocupado com o cultivo das árvores frutíferas abundantes na capital piauiense - a cidade verde, hoje de matas derribadas e sem pés de frutas de colheita segura para as merendas fartas. Havia terrenos plantados por toda parte, e cada celeiro possuía denominação ligada a mulher do proprietário, como a célebre Lavinópolis, ou recebia nomes de cidades, a exemplo de Olinda, Petrópolis, ou nomes de terras distantes - Granada, Zurich, Catânia, ainda se lembravam santos, Tebaida, Betânia, - e por esta forma se conheciam dezenas de quintas e quintais de Teresina, de abundante produção de variadas frutas - goiaba, groselha, pitomba, carambola, banana, limão, figo, sapoti, laranja - e a laranja tinha variedade enorme e dava trabalho livrá-las dos pulgões, das brocas e de outros males. Quantos nomes de laranjas estão na lembrança da gente: a seleta, a bahia, o mimo-do-céu, pingo-de-ouro, natal, pêra, mel-rosa, da-china, tanja, lima, mandarim, cada uma melhor que a outra. Nos dias que correm ainda se encontram alguns tipos desses ricos alimentos cítricos. Já agora em 1987 sumiu-se o caju. Safra pequeníssima. O caju que nada custava a quem o comia, apanhando-o debaixo dos cajuais nas matas teresinenses, derribadas pelo machado das construtoras. O caju da castanha de que o índio se servia para contar a idade. Cada castanha, mais um ano de vida. Menina de castanha, sim, era menina prendada. Jogava-se castanha nas calçadas, sem lambança. O caju dava ainda a cajuada, a cajuína, o doce, o tira-gosto. O pequenino, o cajuí, tinha também seu emprego. Sumiu-se a manga, ou quase está a desaparecer: a de biquinho, a governadora, moscatel, a jambo, a vovó, a espada, a vista-alegre, a de leite - restam hoje a rosa, a lira, a de fiapo, a manguito-do-correio, por preços inacessíveis.

Joel Oliveira, o Job Vial das crônicas saborosas de antigamente, cultor do humorismo à inglesa, se vivo estivesse se decepcionaria com uma Teresina sem arvores frutíferas, a sua riqueza de antigamente - fartura das mesas pobres e da classe média, num tempo em que os pobres podiam viver e a classe média governava uma sociedade justa e decente.

A. Tito Filho, 12/12/1987, Jornal O Dia.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

CLÓVIS E AMÉLIA

Clóvis Bevilaqua nasceu no Ceará. Esteve em Teresina como secretário do Governo do Piauí no começo da República. Casou-se com Amélia, filha de José Manuel de Freitas, pai e filha nascidos em Jerumenha, cidade piauiense. Clóvis adquiriu fama internacional de jurista, e ele muita a mereceu. Conheci-o no Rio de Janeiro em 1942. Tempos de bonde, o bonde de viagem monótona mas gostosa, e da pensão onde tinha minha residência à casa do jurista havia longo percurso de trilhos. Amélia escrevia bem. Fazia romance, crônicas e jornalismo.

O casal famoso, Clóvis e Amélia, gostava de receber amigo aos domingos, para o jantar. Uma vez Bugyja Britto, que parecia convidado permanente, convidou-me a fazer-lhe companhia e fui, assim, conhecer o grande jurisconsulto e esposa. Na visita obtive apetitosa refeição, em momento justo, pois hospedaria de estudante, dia de domingo, só dava almoço tipo ajantarado. Das seis da tarde por diante a quebradeira só permitia forrar o bucho com magra xícara de café com leite e um pãozinho lambusado de raríssima manteiga. A mesa de Clóvis tinha fartura e a bóia sabia bem. Enchi a pança, embora meu desejo principal fosse conhecer o mito Clóvis. Havia ele entrado na casa dos oitenta. Sempre numa cadeira de balanço, vestido de fraque. Não exonerava do traje a gravata. De encantadora simplicidade. Conversei com ele alguns instantes, acanhado, a modo de matuto que eu era. Lembrou-se o mestre de me dizer que dedicava muita simpatia ao Piauí, terra de sua mulher. Contou-me que trabalhou em Teresina, ao lado do primeiro governador republicano Taumaturgo de Azevedo.

Amélia, surda como diabo, conversava com um e com outro, em português, francês, inglês, de acordo com as exigências do visitante. A casa semelhava museu, bazar e jardim zoológico, ao mesmo tempo. Retrato de pessoas feias e bonitas pelas paredes, peças e mais peças de esculturas reboladas pelos cantos, bustos, jarros, baús, tapetes, santos. Bichos vivos, Gatos, cães, curicas, papagaios, chicos-pretos, corrupiões. Algazarra muita, inclusive dos interlocutores de Amélia gritando para que ela pudesse ouvir.

Clóvis morreu em 1944, manhazinha. Amélia fez a viagem derradeira depois. Outras vezes engoli a boa e apetitosa chepa do casal. E nunca esqueci a hospitalidade dos dois bons velhinhos, o jurista e a romancista - e agora, neste 1987, revejo Amélia ao procurar dados seguros para preparar-lhe a biografia.

A. Tito Filho, 01/12/1987, Jornal O Dia.  

ROTEIRO DE PEDRO SILVA

Pedro José da Silva era o nome todo. No Rio, onde residia, organizou os dois volumes de "O Piauí no Folclore", a que ele dedicou boa parte da velhice, - trabalhando em cinco partes, os tipos, as cenas, os costumes; a religiosidade, as festas de São João; o ciclo do natal; e por fim as danças típicas e gêneros musicais. Um dos volumes constava de numerosos fonogramas, ou sons gravados correspondentes às letras das cantigas folclóricas.

Nasceu Pedro Silva em Teresina, ano de 1892. Morreu em 1974, na antiga capital da República. Recebi os dois volumes referidos no princípio de 1975, ao tempo dos últimos dias de Secretário da Cultura - e os deixei para publicação na própria Secretaria e só agora, neste 1987, localizou-se a obra de Pedro Silva, mas sem os fonogramas, que se sumiram. Confiada a mim, pela viúva, entreguei-a à Academia Piauiense de Letras. Para atendimento de atencioso pedido de Eugênia Maria Ferraz, nobre mulher que vem norteando a Fundação Monsenhor Chaves para a destinação cultural da entidade, a ela cedi à coletânea de Pedro Silva para publicação e divulgação.

Pouca gente se lembra de Pedro Silva, músico e maestro, organizador, harmonizador e regente da Banda de Música do 25º Batalhão de Caçadores, de Teresina, que tanto animou a praça Rio Branco dos velhos tempos românticos nas retretas do coretinho central. Muito novo, no começo do século, criou, com Jônatas Batista, o Clube Recreio Teresinense, que levou a cena, no respeitável Theatro 4 de Setembro, as peças "Natal de Jesus" e "Jovita".

Esse dois piauienses - Jônatas e Pedro - tornaram-se as duas principais figuras da vida teatral da capital piauiense durante anos.

Pedro foi também fundador da sociedade teatral "Amigos do Palco", de amadores inteligentes.

Entre 1917 e 1925, o 4 de Setembro viveu grandes temporadas com as revistas de Jônatas musicadas por Pedro: "O Bicho", sátira ao popular jogo criado pelo barão de Drummond, no Rio; "Frutos e Frutas", "O Coronel Pagante", entre outras.

O ativo maestro ainda fundou o Pálace, na praça Rio Branco, animada casa de diversões de muita freqüência, e posteriormente arrendou o Theatro 4 de Setembro, instituindo a empresa Silva e Companhia, quando trouxe a Teresina célebres companhias teatrais de outras terras.

Passando a residir no Rio de Janeiro, trabalhou em estações de rádio como a Mayrink Veiga e a do Ministério da Educação, época em que muito difundiu o folclore do seu Piauí.

A. Tito Filho, 10/12/1987, Jornal O Dia.    

quinta-feira, 27 de maio de 2010

JOÃO CABRAL

Nasceu em Jurumenha (PI), 1870, e faleceu no Rio de Janeiro, 1946. Pais: Honorato Ferreira Cabral e Maria Emília da Rocha Cabral. Estudos secundários em Teresina. Bacharel pela Faculdade de Direito do Recife (1892). Doutor em Direito. Em Manaus, exerceu a advocacia, foi consultor jurídico do governo e procurador dos feitos da Fazenda Estadual. Professor de Direito Comercial da Universidade do Brasil (RJ). Deputado Federal pelo Piauí em duas legislaturas. Ministro do Superior Tribunal Eleitoral. Incumbido de elaborar o projeto do Código Eleitoral da República, foi este aceito com pequenas alterações no governo provisório de Getúlio Vargas. Um dos fundadores da revista "Brasil Agrícola", desaparecida.

De sua autoria o Regimento de Custas Judiciárias do Amazonas e o Processo Penal do mesmo Estado. Elaborou um dos projetos de Constituição do Piauí.

Dos seus numerosos discursos parlamentares destacam-se: "A Nova Reforma do Ensino", "Calafetemos a Nau", "Política de Saneamento" e "A Crise Financeira".

Muito elogiada a sua conferencia literária, de crítica e interpretação, intitulada "A vis poética na literatura piauiense". Revelou-se conferencista delicado e espirituoso.

Com o pseudônimo de João Nulus, publicou, no Rio (1935), "Palimpsestos", versos anotados, explicados e cogidos a rogo do autor por João Cabral. "A sua poesia, no geral, ressumbra aos amavios das cousas que o envolveram durante a meninice. A sua natureza é a sua fonte" (Bugyja Britto).

Conferencista, critico literário arguto, tradutor, poeta, João Cabral foi sobretudo grande jurisconsulto, de renome no país e no estrangeiro, havendo publicado as seguintes obras jurídicas: "Teoria Jurídica da Conta Corrente", "Das Falências e do Respectivo Processo", "Evolução do Direito Internacional”, "Debêntures ou Obrigações ao Portador", "Economia Política", "Leituras de Direito Internacional", "Limitações da Usura no Empréstimos Populares", "Síntese do Problema Bancário Brasileiro", "Duas Lições sobre Direito Navegacional", "O Caminho da Paz pela Ordem Jurídica" e "Sistemas Eleitorais".

"Padrão de cultura jurídica e moral, um símbolo translúcido de nossas melhores aspirações de desenvolvimento e progresso material e intelectual" - dele disse Artur Passos.

João Cabral tinha extremado amor ao Piauí.

Tinha o nome todo de João Crisóstomo da Rocha Cabral.

A. Tito Filho, 01/09/1988, Jornal O Dia.

CONSCIÊNCIA DE CULTURA

Hoje, dia 5 de novembro, a lei determina que se comemore o Dia da Cultura, em homenagem ao nascimento de Rui Barbosa, em 1849. Os modernos estudiosos consideram cultura como o conjunto dos processos de vida de um povo - a língua, a religião, a dança, a música, a literatura, a higiene, a casa, o templo, a alimentação, o conhecimento cientifico, as idéias políticas, as crendices - tudo o que faz o comportamento social, os hábitos, os costumes, as gradações de conduta, não se excluindo o patrimônio arquitetônico sob preservação da própria sociedade organizada, do que resultam os tombamentos tão do gosto dos tempos modernos.

Tombar diz o mesmo que cair, derribar, baixar e outros tipos de ação, mas há outro verbo Tombar, que segundo os entendidos, se tira da famosa Torre do Tombo, de Portugal, onde se guardam arquivos valiosos da história. E neste caso significa arrolar, registrar e também, como inscreve Aurélio, colocam "o Estado sob sua guarda para os conservar e proteger bens móveis e imóveis cuja conservação proteção seja do interesse público, por seu valor arquipélago, ou etnográfico, ou bibliográfico, ou artístico".

Outros valores possuem os bens que devem ser tombados - o social, o político, o arquitetônico, o histórico.

No Brasil, a paisagem cultural dos bens imóveis durante anos esteve desprezada. A praia de Copacabana, no Rio, perdeu o lirismo de anos anteriores, quando a orla marítima era acompanhada de elegantes e bonitas casas de pavimento térreo e superior. Derribaram-se na mesma cidade o Tabuleiro da Baiana, pitoresco e cheio de novidades. Liquidou-se a tradicional Galeria Cruzeiro, ponto de encontro dos políticos. O Palácio Monroe, de elegantes linhas arquitetônicas, foi ao chão. Desapareceu o Palacete Hotel, famosa hospedaria de deputados, senadores e governantes das áreas federadas. E assim por diante. São Paulo tornou-se irreconhecível. A gostosa Belo Horizonte passou a cidade maltratada. Que dizer do Recife? De Fortaleza? Todos perderam o seu feitio em favor de um discutível progresso dito urbanístico e que serve a capciosos interesses de proprietários de terrenos.

Teresina figura mais um exemplo. Para a construção de hotel, Leônidas Melo destruiu o prédio do primeiro Tribunal de Justiça. A velha cadeia deu lugar ao ginásio coberto chamado Verdão. Nada ficou dos primeiros tempos de Teresina. Liquidou-se o Café Avenida - hoje o local de estacionamento de um hotel privado. Já se deformou a antiga residência, de arquitetura tradicional da cidade, que pertenceu a Anfrodísio Tomás de Oliveira. Da encantadora pracinha Pedro II resta o retrato permanente do pecado, na insolência do homossexualismo e da raparigagem farta. Que é da antiga Associação Comercial, de paredes externas de azulejo? Que é do mercadão, que o prefeito Agenor Almeida aumentou, tirando-lhe o aspecto dos primeiros dias, logo depois de fundada Teresina? A memória da cidade desconhece interesses personalisticos. Deve ter base numa consciência de cultura.

A. Tito Filho, 05/11/1987, Jornal O Dia.  

quarta-feira, 26 de maio de 2010

ABDIAS NEVES

Nasceu e faleceu em Teresina (1876-1928). Pais: João da Costa Neves e Delfina Maria de Oliveira Neves. Estudos secundários na cidade de Natal, obtendo distinção em quase todas as matérias. Bacharel pela Faculdade de Direito do Recife (1898). De volta ao Piauí, professor de inglês do Liceu Piauiense, em que também lecionou alemão e lógica. Professor de Pedagogia da Escola Normal. Diretor de internatos "Ateneu Piauiense", "24 de Janeiro" e "São Vicente de Paulo". Procurador da Fazenda do Estado. De 1900 a 1902, Juiz de Direito (interino) de Piracuruca (PI). De 1902 a 1914, juiz substituto federal na capital piauiense. Secretário do Governo. Senador da República pelo Piauí (1915-1924), com atuação digna dos maiores louvores, eleito sucessivamente 4º, 3º, 2º e 1º secretário do Senado. Concluído o mandato, passou a juiz de direito de Marvão, hoje Castelo do Piauí. Foi ainda diretor da Secretaria da Câmara Legislativa do Estado.

Jornalismo - Em Teresina fundou: "A Crisálida" e "A Idéia"; um dos fundadores de "A Pátria" e do "Almanaque Piauiense", diretor de "O Norte", "A Imprensa", "A Notícia", "O Dia" e "O Monitor", redator de "A Luz", "O Reator", "Litericultura" (revista), "O Estafeta" e "Jornal de Notícias"; colaborador em "Teresina 1902", a "A Pena", "Revista de Bolsa", "Indústria e Comércio" e "Revista da Academia Piauiense de Letras".

Atividades parlamentares - No Senado fez elogiados pronunciamentos sobre temas políticos, econômicos e jurídicos. Das proposições que ofereceu, ressaltem-se: construção de estradas de rodagem, instalação de colônia-modelo no Piauí, exploração de fibras, barateamento do custo dos adubos químicos. Foi um dos relatores do Código Florestal.

Obras - "A Guerra do Fidié" (história das lutas de Independência no Piauí), "Imunidades Parlamentares" (estudo de direito constitucional), "O Padre perante a História" (conferência), "Um Manicaca" (romance), "Psicologia do Cristianismo" (e) "Moral Religiosa" (conferências), "Autonomia Municipal" (estudo de direito constitucional), "O Brasil e as Esferas da Influência na Conferência da Paz", "O Piauí na Confederação do Equador", "Aspectos do Piauí", contribuição ao Congresso de Geografia em Vitória, em que foi ele representante do seu Estado - além de discursos e estudos realizados como senador. Deixou inédito "Regime Municipal" e o livro de poesias "Velário", e ainda copiosos trabalhos sobre história, folclore e crítica literária. Deveras profundo o estudo que publicou no jornal "La Nación" de Buenos Aires, sobre o centenário da Independência do Brasil.

Chamou-se Abdias da Costa Neves. Tornou-se dos mais admirados incentivadores da vida social e literária da capital piauiense, cujos costumes do começo deste século retratou com rara fidelidade no romance naturalista UM MANICACA.

A. Tito Filho, 07/08/1988, Jornal O Dia.

terça-feira, 25 de maio de 2010

PETRÔNIO PORTELLA

Piauiense de Valença, nascido em 1925. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, cedo ingressou na política, filiando-se aos quadros da antiga União Democrática Nacional. Deputado da Assembléia Legislativa do Piauí, logo se revelou temperamento combativo, mas sempre disposto ao diálogo de que resultassem benefícios coletivos. Em renhido pleito popular conquistou a prefeitura de Teresina, realizando administração sóbria, honesta e segura. Encerrado o mandato a 31 de janeiro de 1963, já estava eleito Governador do Piauí, em cujo cargo deu especial atenção aos problemas e assuntos educacionais, além de realizações da mais alta importância. Expandiu a rede de ensino primário e médio. Criou e instalou o Conselho de Educação. Encampou a Faculdade de Odontologia e criou a Faculdade de Medicina - institutos que, com as faculdades de Direito e Filosofia, se tornaram o ponto inicial da futura Universidade.

Os conterrâneos mais uma vez depositaram confiança no jovem líder e ei-lo, 1967, Senador da República, reeleito oito anos depois para o segundo mandato. Revelar-se-ia, então, o homem de Estado, sensível aos acontecimentos políticos e sociais da nacionalidade. Logo foi investido da vice-liderança do Governo, numa época de conturbações partidárias. Em seguida, líder. Começavam a pesar-lhe sobre os ombros importantíssimas responsabilidades nacionais. Presidente do Senado e consequentemente do Congresso Nacional, duas vezes. Presidente da Aliança Renovadora Nacional (ARENA). Praticou, em todas as funções, seriedade, e nunca fugiu da verdade. Deu-lhe o Governo a incumbência de ouvir setores da vida brasileira - e aí surgiu a Missão Portella e a derrubada dos diplomas totalitários da República. Coordenador político do Presidente João Batista Figueiredo, de quem aceitou, o cargo de Ministro da Justiça, levando o Ministério a reconquistar o seu prestígio e grandeza no quadro político republicano. Enfrentou problemas graves: a censura, a violência urbana, a extinção e a criação de grêmios partidários. De tudo se saiu com aprumo, equilíbrio e dignidade, acatado e respeitado por correligionários e adversários. Traço eloqüente do seu caráter: não enganava. Era veementemente sincero. Não dava publicidade a preocupações que o afligiam, mas não deixava de confessá-las aos companheiros de vida pública, do Governo e da Oposição, para que pudessem, com as advertências, ser preservadas as instituições.

No Senado, praticou gesto sem precedentes, concretizando o plano editorial com a publicação de obras e debates das mais extraordinárias figuras do Parlamento brasileiro.

E ao Piauí ofereceu a luta e o esforço permanente, conseguindo, nos idos de 1968, que o presidente Costa e Silva criasse a Fundação Universidade Federal do Piauí, com o objetivo de manter a Universidade Federal do Piauí - entidade que era sonho e hoje é orgulho dos piauienses.

Inteligente, culto, devotado à terra que o viu nascer e à sua gente, Petrônio Portella, nestes últimos anos, se dedicava sobretudo ao culto da bondade e da virtude. Exonerara-se de quaisquer ressentimentos para com os outros. Amava a concórdia. Queria bem a todos.

E foi esta imagem que ele deixou, no dia 06 de janeiro de 1980, data da viagem sem regresso: um coração e um cérebro a serviço do próximo.


 
A. Tito Filho, 07/11/1990, Jornal O Dia

segunda-feira, 24 de maio de 2010

CELSO CENTENARIANTE

A 24 de novembro de 1877 nasceu, na pacata vila piauiense de Barras, Celso Pinheiro, que agora, vivo estivesse, festejaria o seu primeiro centenário de nascimento. Foi jornalista desde os tempos de estudante, poeta na mocidade sonhadora. Era filho do terceiro casamento de João José Pinheiro, também pai, em núpcias anteriores, de João Pinheiro e Breno Pinheiro, fulgurantes beletristas do tempo passado.

A quase totalidade da obra de Celso Pinheiro permaneceu inédita. Ele organizou-a em vida, distribuindo-a por 18 títulos, dois volumes de prosa e o restante de lídima poesia. Nas concepções figuram os pais, os irmãos, os filhos, a esposa, as moças tuberculosas de Teresina, a babá da meninice, bem assim os sofrimentos íntimos do poeta, a religiosidade, a beleza dos crepúsculos, as mulheres, os intelectuais. Em "Coroa de Espinhos" encontram-se os últimos poemas, os de uma semana antes de sua morte. Deixou uns cinco volumes de assuntos políticos, inclusive sátiras, justamente os que assinalam uma época de formidáveis paixões do partidarismo piauiense, de 1945 até a morte do poeta, em 1950.

As concepções literárias procedem das neuroses e dos sofrimentos dos seus autores. Celso não se desgarraria da observação. Desde cedo sofreu física e espiritualmente. Milionário de angustias intimas, alucinado de dor, pleno dos martírios que a vida lhe impõe, constrói os versos científicos de que abarrota gavetas e armários caseiros. Ele mesmo conta a sua história sem remédio em cada poema que colhe da alma em pranto.

Augusto dos Anjos realizou Eu com pedaços do coração maltratado. Deflorou e engravidou Maria, de humilde condição social. A mãe do poeta, senhora de engenho, mandou surrar a menina, que morre da surra - ela e o rebento da barriga. Augusto sofreu consequências violentas desse drama doméstico e tornou-se melancólico. Contou a tragédia no seu livro de tantas edições, acima referido. José Lima do Rego, conterrâneo do poeta, disse que ele escondia uma mágoa secreta, um rancor contra a própria mãe.

X  X  X

Em 1972, sustentei que Martins Napoleão, magnífico beletrista aceitava nos seus poemas a morte como processo de extermínio do sofrimento. Assim como Celso Pinheiro, foi Napoleão, no uso da palavra como conteúdo da poesia, como mensagem poética. Em Tomás Gonzaga, tudo se expressa nos adjetivos formoso, lindo. Duro é o adjetivo de Camões. Em Álvaro de Azevedo, pálido, lívio, frio. Napoleão se revela em essência pelo conceito: lágrima, pedra, sofrimento, amor, morte.

Celso Pinheiro consubstancia a angustia do homem martirizado pela crueldade da vida. Os versos revelam o seu verdadeiro psiquismo. Emoção a cada instante, e o vazio da alma, fazem dele um dos grandes poetas nacionais. A dor possessiva sublimou-o em comoventes criações poéticas - que não pertencem ao parnasianismo nem ao simbolismo, como disse Agripino Grieco. Penso que ele pretendeu, da forma que Horácio de Almeida sentiu em Augusto dos Anjos, ocultar o pensamento, num movimento de interpretar os profundos e martirizantes sentimentos íntimos e entregá-los ao mundo objetivo.

A. Tito Filho, 29/10/1987, Jornal O Dia.

domingo, 23 de maio de 2010

JOÃO PINHEIRO

O conto foi pouco cultivado nas primeiras fases da Literatura piauiense. Parece que o primeiro em salientar-se nesse gênero se chamou Francisco Gil Castelo Branco, diplomata, que serviu em Assunção do Paraguai e morreu na cidade francesa de Marselha. Em 1874 publicou "Um Figurino", uma só pequena estória, e dois anos depois entregava aos leitores "Contos a Esmo". Seguem-se diversos contistas como João da Cruz Monteiro ("O Major Irineu Gomes Coelho"), João Alfredo ("Contetos"), João Licínio de Miranda Barbosa ("Esmaltes"), Arquelau de Sousa Mendes, Júlio Emílio de Paiva Rosa ("As infelicidades de Tibério"). No século XX salientavam-se nesse tipo literário Amélia Bevilaqua e Clodoaldo Freitas. E mais perto de nós se encontram Esmaragdo de Freitas, Álvaro Ferreira, Lilizinha Carvalho, Edgar Nogueira, Fontes Ibiapina, para que se citem apenas os que passaram desta para melhor vida. Mas no meio desses cumpre colocar o principal deles, o que deu expressão ao conto regional piauiense, homenageado, ano a ano, com um concurso de contos que leva o seu nome - João Pinheiro, falecido no Rio de Janeiro mais de quarenta anos passados. Dentista da profissão, chegou a criar e vender o "Pó Ideal", dentifrício aromático.

Mas seguiria outros rumos - o magistério, em que se tornou mestre acatado de português; e as atividades intelectuais, respeitável estudioso de nossa história e de nossa vida literária, além de poeta e contista. Entre outros trabalhos, publicou uma história da literatura piauiense, em que fixa as suas fases iniciais, autores respectivos, analisando-lhes, embora sem profundidade, as obras que publicaram. Talvez o primeiro caminho seguro para os futuros intérpretes futuros. No terreno da ficção, publicou dois livros de contos - "A toa" e "Fogo de Palha", servindo-se do material das lendas ou de acontecimentos reais. Retrata com talento caracteres físicos e reproduz nos diálogos a fala sertaneja, com sinceridade. As suas descrições de cenários naturais parecem copiadas pela acuidade de pintor genial.

As páginas de João Pinheiro entusiasmam por virtude de um estilo simples e do modo tão dele de reproduzir cenas em que cabras corajosos do sertão duro se mostram em toda a arrogância nas lutas de suor e morte. O contista piauiense merece ser relido das novas gerações.

A. Tito Filho, 27/11/1987, Jornal O Dia.

AINDA ODILON

Nos longínquos fins dos anos setecentos o Piauí enfrentava problemas angustiantes de tardio povoamento, dificuldades de transporte - sem agricultura e sem escolas. Não se esqueça a perversa matança da indiada, aos magotes. João do Rego Castelo Branco liquidava todo tipo de índio: feto, recém-nascido, criança, adolescente, moços, maduros e velhos. As estrepolias sangrentas desse exímio degolador ingressaram na história e na literatura. Cumpria ordens dos conquistadores da terra e dos governantes. E cumpria-as sem um pitoco de remorso, alegre sempre. Em Odilon Nunes se admira a paciência na busca do documento - documento que ele confere, examina, estuda e dele retira a verdade, para a narrativa segura e a análise esclarecedora. Narra o mestre os episódios da independência: Parnaíba, Oeiras e Jenipapo. E lembra que no começo do século XIX o ouro, o diamante e o açúcar estavam em decadência. O Norte representava dois terços da atividade útil do Brasil. Se Fidié se mantivesse no Piauí, como queria D. João VI, Portugal dominaria o Norte e evitaria a vitória dos baianos, cortando-lhes o fornecimento de carne. Maranhão, Piauí e Pará formariam o Brasil Português, subordinado a Lisboa. Adiante Odilon estuda as causas da Balaiada. Para ele, essa guerra violenta no Maranhão e Piauí resultou de um choque de culturas. As origens próximas da luta estavam na prática perniciosa do recrutamento feito pelo Exército, fazendo que pobres cablocos entrassem para o serviço das armas, longe da terra e da família. As causas sérias eram outras: as condições de ordem econômica geradoras de permanente miséria coletiva; a terra, confiada a poucos, àqueles que representavam o regime político e que viviam de explorar o homem do interior; a fome e a estrutura social, o brasileiro esquecido e abandonado. Finalmente realizados estudos sociais e políticos da maior relevância: as lutas partidárias, o processo educacional, o regime de trabalho, o crime e as suas causas, a mudança de capital de Oeiras para Teresina, a guerra do Paraguai, a liberdade dos escravos, a colonização e aspectos culturais do Piauí. Pena que o ilustrado e honesto historiador esbarre na República. De tudo se deduz que no fim do século XIX o Piauí parecia esmorecer: economia de subsistência, fontes de riqueza estagnadas, comércio e lavoura em grandes dificuldades, decadências da pecuária, tristes condições educacionais e culturais.

A. Tito Filho, 14/11/1987, Jornal O Dia. 

sábado, 22 de maio de 2010

50 ANOS PASSADOS

Getúlio Vargas subiu ao poder na crise revolucionária de 1930. Governou ditatorialmente o País até que se votou a Constituição Federal de 1934, quando os constituintes o elegeram presidente da República para um mandato de quatro anos. Em 1935, houve os episódios comunistas de assalto aos quartéis e forjou-se o Plano Cohen, como de comunistas, mas na verdade criação de interessados num golpe contra o regime. Iniciou-se a caça às bruxas, com inquéritos por todos os recantos e prisões às pencas, inclusive do líder Luiz Carlos Prestes. No ano de 1937, três candidatos à presidência entusiasmavam o Brasil: José Américo de Almeida, paraibano, criador do romance regional com "A Bagaceira", advogado, ex-ministro da Viação, apoiado pelas forças situacionistas, à frente das quais o presidente Vargas; Armando de Sales Oliveira, o ex-governador de São Paulo, dono de popularidade irrecusável no seu Estado; e Plínio Salgado, escritor de formação totalitária, chefe nacional do integralismo brasileiro. Inflamados oradores os três, arregimentavam multidões na realização de comícios memoráveis. A 7 de setembro de 1937, Getúlio falaria aos brasileiros num bonito discurso de  despedida presidencial. Por trás das paredes do Palácio do Catete, porém, tramava-se o golpe, finalmente vibrado a 10 de novembro do mesmo ano. Encerraram-se as atividades do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereança. Outorgou-se ao País nova Constituição concebida e redigida pelo maquiavelismo de Francisco Campos. Mantinha-se no poder Getúlio Vargas, instituidor de feroz regime ditatorial, de perseguições, torturas e mortes, a cargo do carcereiro Felinto Muller.

Vários líderes nacionais foram expatriados. Esse estúpido regime contra os direitos humanos, de grandes malefícios impostos à nação sofredora e censura drástica, ruiu totalmente a 29 de outubro de 1945, com a graça de Deus. Getúlio retornaria ao poder em 1951, para matar-se no Palácio do Catete, com um tiro de revólver no peito esquerdo, a 24 de agosto de 1954.

A. Tito Filho, 12/11/1987, Jornal O Dia.

EVOLUÇÃO

A rua Paissandu era, até bem pouco tempo, o nome de batismo da zona do meretrício, embora esta ocupasse pequeno trecho da citada via pública. Bom recordar um pouco. À beira do Parnaíba mariposas exploravam embarcadiços de gaiolas, lanchas e barcas. Nesses descaminhos antigos existiam alguns famosos cabarés também ditos pensões: o da Raimundinha Leite, o da cabloca Gerusa e o da Rosa Banco. Todos tinham orquestras e muito se dançava com as horizontais. Havia movimentado serviço de bebidas. As raparigas, no mau sentido, recebiam os fregueses em quartos bem arrumados, de cama e penteadeira. Depois do ato, o pagamento. Os quebrados enrolavam, passavam chumbo e tomavam descompostura. As mariposas residiam no próprio cabaré e aí tinham as refeições. Pagavam diária à cafetina dona do açougue. Algumas possuíam amigação, ou seja, o macho do amor exclusivo. No carnaval as meninas se fantasiavam ricamente e participavam do corso, ou desfile de veículos pelas vias públicas previamente indicadas. Os caminhões das garotas eram os mais bonitos e mais aplaudidos. Nos cabarés teresinenses misturavam-se estudantes, comerciários, professores, magistrados, servidores públicos, comerciantes, militares, pobres e ricos, todos nivelados na busca do sexo. Chegaria a fase da buate, a partir da década de 60 - inferninhos de luz muito fraca, uma semi-escuridão, em que casaizinhos pintavam o sete em matéria de primícias e até de últimas considerações entre os dois bens escondidos na quase trevosa sala. Recorde-se que a zona da Paissandu oferecia inúmeros freges, botecos e restaurantes de panelada. Teve começo a decadência. Fecharam-se os notáveis bordéis dos velhos dias. Mulheres feias, desgrenhadas, começaram a habitar os cabarés já agora sem conforto e sem higiene. Garotas bonitas do Ceará e do Maranhão deixaram de fazer a vida em Teresina. As mulheres já não conseguiram pagamento e trocavam o sexo por uma refeição madrugadina. O cabaré desapareceu da paisagem. Chegou a vez da buate (buate com U mesmo, meu caro revisor). Também o rendez-vous que enfeitou a vida teresinense - o rendez-vous que mais acolhia homens e mulheres, gente de outros parceiros, fazendo adultério. Chegaria a vez do motel, mas a estória do motel é outra estória, como a ressurreição da camisinha e a espantosa ameaça da AIDS.

A. Tito Filho, 19/11/1987, Jornal O Dia. 

sexta-feira, 21 de maio de 2010

O CRONISTA JOÃO ISIDORO

Chamou-se João Isidoro da Silva França, português de origem, braço forte de José Antônio Saraiva na construção de Teresina, a primeira cidade brasileira levantada em traçado geométrico, no chão da mata derrubada. As outras são Belo Horizonte, Goiânia e Brasília.

Teresina não nasceu espontaneamente, mas de modo artificial, prevendo-se as ruas e praças. Planta de João Isidoro. No Piauí, os núcleos populacionais tiveram inicio nas fazendas de criação de gado, junto às quais se erguia o templo religioso - e assim começou a futura capital do Piauí na Chapada do Corisco, um lugar de rebanhos bovinos. Faltava a Casa de Deus e o mestre-de-obras de Saraiva logo riscou a planta da igreja Nossa Senhora do Amparo, inspirando-se nas linhas das igrejas nordestinas.

João Isidoro fixou-se na Chapada do Corisco em 1850. Construiu três casas de palhas, uma para a sua residência, esquina da atual rua Rui Barbosa, na Praça Marechal Deodoro, e as outras duas no rumo da hoje rua Álvaro Mendes, destinadas ao corpo policial e aos trabalhadores.

Lançou-se a pedra fundamental do templo católico a 25 de dezembro de 1850. Houve banquete. Muito foguetório. Ia nascer uma cidade. As mulheres usaram vestidos bonitos e se enfeitaram de jóias caras, pois já havia o soçaite da época.

O fabuloso João Isidoro, como disse dele o historiador Moyses Castelo Branco Filho, contou os festejos a José Antônio Saraiva, em carta, por esta forma: "Ao depois de uma missa do Senhor Vigário dita do meu rancho pelas 11 horas da manhã, acompanhado de todas as autoridades da Vila e mais membros da Comissão e as senhoras das principais famílias todas bem ornadas de jóias e bons vestidos e mais os principais cidadãos da Vila, tendo também acompanhado o Alferes do Destacamento as autoridades junto com alguns praças... e mais imensidade de povos  de fora, que aqui se ajuntou, toda esta brilhante companhia... e marchou para o sítio da nova Matriz onde se achava a tropa formada e metendo o Senhor juiz de Direito na pedra solene duas moedas, uma de prata e outra de cobre, com o cunho do Império... o dito Sr. Juiz de Direito deu vivas a sua Majestade Imperial o Senhor D. Pedro Segundo e a S. Imperial Família e à Constituição do Império, e o Exmº Sr. Presidente da Província... e ao depois disto, deram-se três descargas à tropa de alegria".

Os convidados vieram da Vila do Poti, que hoje é o Poti Velho.

João Isidoro escreveria a primeira crônica social de Teresina.


A. Tito Filho, 13/14 de dezembro de 1987, Jornal O Dia. 

quinta-feira, 20 de maio de 2010

MESTRE ODILON

AS PESQUISAS PARA A HISTÓRIA DO PIAUÍ, de Odilon Nunes, em 4 volumes, revelam a saga piauiense, dos primeiros tempos até o fim do período provincial, uma saga com gosto e sabor de tragédia.

Do volume inicial constam a pré-história, os primeiros contatos com a terra, os primórdios da colonização e dos currais, a ausência de disciplina legítima e os governos que deram começo à vida política. A narrativa abrange os índios, a matança destes, a sangueira, o genocídio, as lutas sem fim, as sesmarias, o Parnaíba, riozão famoso, o território imenso de população escassa. Uma vez escrevi que a história do Piauí, no princípio, está no pânico e no vácuo. Dias perigosos: o pânico. A volúpia mortífera das desgraças do meio: o vácuo. Odilon mostra e interpreta isto tudo. Neste ponto o seu extraordinário valor: análise dos episódios, causas e consequências. Domingos Afonso Mafrense e o xará Domingos Jorge Velho - sertanista e bandeirante - penetraram o Piauí com seus troços de gente, e colonizaram terras, senhores de sesmos e de latifúndios, de gado bovino de outras paragens. Sobre o primeiro não há dúvida. Com o outro, o paulista, baita de homem severo e truculento, indicam alguns historiadores e dizem que não passa de lorota a sua vinda ao Piauí, donde saiu para a matança dos Palmares, nas Alagoas.

Odilon estudou detidamente o fato em mais de um trabalho, anotou referencias a bandeiras paulistas que agiam nos sertões do São Francisco. Fim do século XVII. Admirável a ação dos catequistas. O Piauí torna-se cenário histórico empolgante. Já o bandeirante transmuda-se em curraleiro, encourado, nômade, solitário, individualista - são ensinamentos de Odilon. A riqueza era o gado e da rês se aproveitava tudo, a carne, os ossos, o tutano, bofes, cascos, couro, chifres, fezes, até o membro genital enorme do bovino; na panela, no cornimboque, nas liteiras, no gibão, nos arreios, em certos vasilhames de viagem, nas portas, nas calçadas. Muitos falaram dessa civilização do couro.

Sertão desconhecido, ignoto, temeroso. Dizem até que a famosa Casa da Torre, no litoral da Bahia, tinha duas faces, uma para o mar, vigiando piratas e inimigos, outra para as terras de perigos sempre fartos.

Até a independência, a história do Piauí se resume quase na história da pecuária. Bois, vacas, garrotes e bezerros apinhavam os lugares. Cada vez mais cresciam os rebanhos sem mercados. O vacum representava a moeda, o dinheiro. Inexistia patrão. O vaqueiro não era empregado, mas sócio nas reses, e escreveu páginas inesquecíveis na vida piauiense.

A. Tito Filho, 13 de novembro de 1987, Jornal O Dia.

LITERATURA PIAUIENSE

Quando, em 1973, organizei e comentei, a pedido de Deoclécio Dantas, toda a produção literária de Raimundo Zito Batista, escrevi, no livro que se publicou, o seguinte, a respeito da sua poesia: "Em Zito não há o sentimento da paisagem piauiense. Amadureceu no mundo da máquina, da metralhadora, do avião, da guerra - mas esses temas não se revelam nas suas criações poéticas. Toda a sua temática é melancólica - as angustias íntimas vitais e universais. Verso denso, enérgico, grave, dolorido. Habilíssimo no decassílabo. Sua obra revitaliza os temas fundamentais do amor, do ódio, da mulher, do sofrimento. Puro tradicionalismo estético, de terrível sinceridade, de realidade viva e dolorosa. São raros os poetas como ele, de tanta força expressiva. Há, nas suas concepções, desolada e humana visão da vida e da intimidade do homem. Poesia psicológica - poesia essencial".

Na poesia de Zito não se encontra o Piauí, na sua paisagem social, histórica ou geográfica. Pelo menos não a encontrei, embora lesse e relesse os poemas com dobrada atenção. E outros nascidos em terras piauienses fizeram literatura pelo mesmo jeito de Zito nos versos concebidos: não há temas interiores ou exteriores com o Piauí. Esses autores, pois, como Cruz e Sousa em Santa Catarina, pertencem à literatura brasileira, nunca a literatura da chamada terra natal. Defendo o principio de que a literatura piauiense dos documentos cujo conteúdo seja de temas de nossa terra, com problemas de qualquer natureza, e se assim acontece, óbvio será que à obra se incorporará o cenário natural piauiense.

O admirável Assis Brasil publicou um livro em que o Parnaíba é personagem principal - e todo o seu cortejo exuberante de beleza e riqueza na meninice do escritor. Do cenário piauiense, social e geográfico do Piauí se apresenta a denominada Teatrologia, integrada dos romances verdadeiros "Beira Rio Beira Vida", "A Filha do Meio Quilo", "O Salto do Cavalo Cobridor" e "Pacamão". Todos os demais produtos literários da inteligência de Assis Brasil - uns 50 livros - não pertencem à literatura piauiense.

Assim penso, salvo melhor juízo dos doutos e entendedores universais do assunto.


A. Tito Filho, 08/09 de Novembro de 1987, Jornal O Dia.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

TERESINA

Teresina foi a primeira cidade do Brasil construída em traçado geométrico, no chão da mata derrubada. As casas de moradia tinham a parede da rua rente com as calçadas. Havia um corredor central, ladeando as salas e alcovas, a sala de refeição no meio, com peitoris para o saguão, e o célebre puxado de quartos, despensa, cozinha e banheiro. Esta estrutura ainda existe em muitas residências. Depois se construiriam palacetes.

Teresina não nasceu espontaneamente, mas de modo artificial, prevendo-se praças e ruas. Fizeram-se as edificações mais necessárias: mercado, cemitério, hospital, cadeia. Surgiu o jornal. Criaram-se clubes. Animada a vida teatral. Festivos carnavais. Fundaram-se clubes recreativos. Apareceram os primeiros cafés e restaurantes. Jogo de bilhar, passeio de cavalo. O costume das serenatas. Os festejos religiosos.

Ainda no alvorecer do século XX e nas proximidades de 50 anos, Teresina não tinha serviço d'água encanada nem luz elétrica: comuns os cargueiros d'água que abasteciam as residências, montados no jumento bisonho, trepado na cangalha gigante. Deliciosos tempos de Teresina doutrora. O astro era o acendedor de lampiões - candeeiros no alto dos postes, queimando querosene. Ao lado do desconforto, da poeira, das raras medidas de higiene, da tuberculose e da sífilis, do casebre de palha, a maledicência generalizada nas rodas de calçadas e nos serenos de bailes.

Nos primeiros anos do século, a água encanada. No Governo Miguel Rosa, luz elétrica, sociedades literárias animavam a cidade. Chegou a era do cinema - o mudo, depois musicado, finalmente o falado. O jardim, o jardim da Praça Rio Branco, de doce lirismo, rapazes rodando num sentido e garotas noutro para o namoro paroquiano mais gostoso, o namoro dos olhos. Chegaria a vez da Praça Pedro II. Do mesmo jeito, olhos dele grudados nos dela. Correram mais de 50 anos. Teresina crescia mas permaneciam os costumes provincianos. O bom gelado do pega-pinto, o sorvete de gelo rapado, os tipos populares, os freges de panelada, a cidade pacata, dorminhoca às 21 horas, familiarmente. Boa bolinação nos cinemas, em que as normalistas gostosas namoravam apimentadas. E os cabarés da Raimundinha Leite, da Gerusa, da Rosa do Banco, repletos de borboletas fornidas e nos quais se ombreavam desembargadores, estudantes e vareiros.

Crime só de longe em longe por motivos passionais as mais das vezes. Raros assassinatos bárbaros. Contam-se, assim, de memória, as mortes do motorista Gregório, de Lucrécio Avelino e do motorista trucidado por Catanã.

Ainda em 1952, época do primeiro centenário da cidade, Teresina padecia tristíssimas condições de conforto, em todos os sentidos. Péssimo calçamento das ruas, ausência de higiene, falta de escolas, mendicância generalizada. Chegaria, porem, o chamado progresso físico, o asfalto, os aviões a jato, o comércio de prestações, os restaurantes sofisticados, o carro financiado, a casa do BNH, a televisão, o jornal moderno, a civilização da lancheira, o supermercado onde as matronas compram frango depenado. Nos velhos tempos as senhoras carrancudas só compravam galinhas soprando-lhes as penas e lhes apertavam o bico a ver se o gogo escorria. Os bons cabarés da Paissandú desapareceram, substituídos por motéis e gramas de praças para o amor.

De trinta anos para cá a cidade mudou muito. Desespiritualizou-se. Tem no dinheiro o status e o conforto material repousa em dívida. Vigora o cheque sem fundo. Por onde anda o pega-pinto que ajudava a fazer pipi? Teresina possui contrastes aviltantes. Jóquei e Itararé. Mansão e casebre. Morreram hábitos. Surgiu Universidade e hoje se fabricam doutores para o desemprego.

Garotas ricas se desnudam ao lado das ruas que não têm com que cobrir as suas vergonhas.

Mas Teresina reencontrará o bom caminho. Cada dia fica mais bonita em graças construídas pelas mãos do homem. Os seus intendentes e prefeitos cada qual tem melhorado, dentro das suas possiblidades, os aspectos da criatura de José Antonio Saraiva.

É necessário lutar pela humanização da cidade. Fazer que ela retorne à vida espiritual de antigamente. Enquanto a gente pensar assim, Teresina será sempre um instante de beleza no coração dos que amam.

A. Tito Filho, 12 de setembro de 1990, Jornal O Dia. 

terça-feira, 18 de maio de 2010

A CATERVA

Em 1931, jovens da sociedade teresinense criaram uma curiosa sociedade a que deram o nome de A CATERVA. Foram eles Jacob de Sousa Martins, Clemente Honório Parentes Fortes, Anízio de Abreu Cavalcanti, Ismar Bento Gonçalves, Raimundo de Moura Rego, Gonçalo Lopes Lima, José do Patrocínio da Silveira Caldas, Afonso Barbosa Ferreira, Firmino Ferreira Paz e Wagner de Abreu Cavalcanti. Tratava-se de "uma congregação unida por afinidade intelectual" e os criadores desejavam sobrepor-se ao marasmo da inteligência do meio. Reinava a pobreza material que não permitia iniciativas sérias.

O seminário dominical "O Lábaro" constituía a imprensa da mocidade. Nas suas páginas revelaram-se talentos. Tinha feitio literário, mas cessou de existir por razões financeiras.

Surgiu, a 3 de maio de 1931, "A VOZ DO NORTE", com rápida conquista de leitores cultores. Tinha aspecto sadio e nas suas páginas Moura Rego e Wagner Cavalcanti publicavam elogiadas concepções de prosa e poesia.

Nesse tempo vivia Antônio Lemos, o SEMANA, respeitável figura do jornalismo piauiense, que editava o órgão político A LIBERDADE, em cuja sede ele suportava pacientemente as declamações de Wagner, as piadas de Clemente Fortes, as sátiras de Afonso Ferreira.

Os rapazes conjugavam-se, espiritualmente, e formaram um bloco especial, A CATERVA, nome escolhido por Anízio Cavalcanti e aprovado pelos colegas.

Havia em Teresina um lugar de afluência de estudantes, o Arquivo e a Biblioteca Pública do Estado, e aí se liam livros de literatura e de outros gêneros. Nesse ambiente surgiu a ideia da fundação de um jornal literário, que foi A VOZ DO NORTE, e de uma entidade de sócios restritos, integrada dos setores do órgão, denominada A CATERVA, em que preponderava a afinidade moral e intelectual dos seus membros.

Um interessante e curioso grêmio cultural, que não tinha prazo de reunião. Os jovens que o constituíram puderam sacudir a sonolência intelectual dos teresinenses nesses inesquecíveis anos da década de 30.

A. Tito Filho, 16 DE JANEIRO DE 1990, Jornal O Dia.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

OBSERVAÇÕES

Dizem que Juscelino realizou a revolução industrial brasileira. Implantou fábricas de automóveis e eletrodomésticos.  Maravilhosa sabedoria. O bom Brasil largou o campo, a produção agrícola, e correu para as cidades grandes dos automóveis, das enceradeiras, das máquinas de lavar roupas. As exportações milionárias de carne desapareceram. Só São Paulo e o sul permaneceram fiéis à produção agrícola, embora não recusassem a industrialização. E cada dia o Brasil fica pior, com a infernal máquina publicitária em busca de mercado para tudo o que os norte-americanos emprestam às fórmulas de fabricação, cobrando roáltis absurdos. O Brasil, é bem de ver, faz parte do quintal da América Latina.

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A Prainha foi lugar dos mais aprazíveis de Teresina. Tinha uma finalidade social: o lazer, sobretudo o dominical. Dava gosto freqüentá-la. Não durou muito tempo o seu ambiente cordial e amigo. Invadiram-na mariposas e horizontais de todo tipo. Firmou-se como ambiente de demoradas cachaçadas. Tornou-se local de violência e mortes estúpidas. Assim vai ser Poticabana, foco de drogas, de viciados, de revólveres. Quem viver verá.

Que é do Clube dos Diários? A Polícia de Teresina deveria ter ao menos compostura. Meses atrás, ainda se podia tomar uma cerveja em sossego nessa outrora casa de beleza espiritual. O próprio jogo, nos porões, tinha a freqüência de pessoas ilustres e dignas, que procuravam um pouco de diversão noturna. A jogatina agora está explorada por mulheres de vida livre, raparigas velhas surradas que passam a noite de olhos abertos em companhia de indivíduos desconhecidos, gente agressiva e deseducada, com exceções algumas. Ambiente de perdição e luxúria, no centro da cidade de Teresina.

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Não haverá inverno. Os sábios já decretaram sete anos de invernos fracos neste miserável Nordeste brasileiro. Descansará o povo do Poti Velho, livre das enchentes enormes de derribar choupanas. O pessoal um dia criará juízo. José Antônio Saraiva, baiano inteligente, recusou o local para a construção de Teresina justamente por motivo das fortes invernadas, alagações e outros tormentos. Mas o povo não arredou pé de lá até hoje. Viva a burrice.

A. Tito Filho, 07 de fevereiro de 1990, Jornal O Dia. 

domingo, 16 de maio de 2010

LINGUAGEM

Uma feita escrevi a respeito da linguagem de Jorge Amado, que alguns consideram atentatória ao pudor, pornográfica, ofensiva da educação puritana de donzelas puras e rapazolas ainda de buço ralo. Lembrei o presidente Truman, dos Estados Unidos, antigo vendedor de gravatas no Missouri. Um jornalista criticou-lhe a filha Margaret, admitindo que a moça, que se julgava cantora, cantava muito mal. Truman defendeu a filha pela televisão, e xingou o jornalista de SON OF A BITCH. Sobre Truman choveram protestos de toda parte, das ligas americanas de moralidade, de sindicatos de educadores, de gente cultivadora de falsa pudicícia.

No meu artigo traduzi o SON OF A BITCH como FILHO DE QUALQUER COUSA. Fugi de dar o verdadeiro significado da expressão entre os norte-americanos.

Magalhães Júnior no seu "Dicionário de Coloquialismos Anglo-Americanos" registra SON OF A BITCH, isto é, FILHO DE UMA CADELA, e atesta que tal expressão é o pior insulto da língua inglesa.

Disse eu que não elogiava o impropério de Truman. A alta dignidade da função não o autorizava a ombrear-se com o calão do submundo social. Truman tinha o dever da expressão nobre. Mas, se Truman fosse o homem-de-rua, só os falsos correriam, envergonhados, da usança expressional de todos. Às vezes SON OF A BITCH, por razões semânticas, não xinga propriamente a mãe dos outros. Traduz antipatia, e muita vez até se torna modo de elogiar a grandeza alheia. Quando Lacerda convocava atenções das galerias nos seus irônicos arroubos oratórios, ouvia-se, à boca pequena, de ouvintes catequisados de tanta inteligência:

- É um filho duma puta!

A linguagem humana é meio de entendimento da comunidade que se manifesta por processos vários. Há a linguagem literária, asseada, estruturada, e ao lado dela a linguagem natural, despoliciada, no contato com os amigos, nas diversões, a linguagem chã, plena de expressões triviais - veículo de entendimento geral, que todos compreendem, instrumento de conversação do doutor com a verdureira, do sábio com o limpador de sapatos.

Jorge Amado busca a vida para a concepção dos seus livros. A linguagem é vida. Jorge é repórter da vida. Passou o romantismo e com ele se foi a linguagem de polimento que José de Alencar punha na boca das cozinheiras e das babás.

Essa fotografia da fala da comunidade não pertence apenas a Jorge Amado. Pertence a José Américo, a Lins do Rego, a outros. 

A. Tito Filho, 03 de janeiro de 1990, Jornal O Dia.