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sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

PAGODEIRA - I

A de março de 1964, sexta-feira, eu me encontrava no Rio de Janeiro. Era dia de festa política comandada pelo presidente da República João Goulart. Os jornais anunciavam o grande comício na Central do Brasil. Haveria pregação de reformas sociais na palavra dos líderes-oradores. Boquinha da noite me desloquei para o local. Gente muita. Dezenas de faixas exigidoras de mudanças urgentes. Palanque vistoso, bem iluminado, em que figuras projetadas do grupo presidencial tomavam lugar e posição. Fiquei um tanto distante do foco principal de entusiasmo. Vi de longe Osvaldo Pacheco, comunista de vários costados. O baixote Seixas Dória, sujeito de bem, governador de Sergipe. Ministros anunciados pelas amplificadoras. Enxerguei o notável Clidenor Freitas Santos, que era o presidente nacional do Instituto de Previdência e Assistência aos servidores públicos. E muitas outras personalidades importantes. Corria o tempo e eu a observar o movimento. Foguetório paulificante. Em dado instante, urros e vivas. A multidão ululante estava frenética. João Goulart chegava ao palanque, acompanhado da esposa, Teresa, bonita como quê, uma espécie de receita médica para tipos de bom gosto. Ia principiar o relatório até que chegou a hora e a vez do presidente da República.

*   *   *

Neste ponto entra a verve, o bom humor do carioca, que criou esta estória de primeira categoria. No comício, distancia regular do palanque, puseram-se dois amigos, funcionários públicos carregados de filhos e moradores em casas alugadas. Um deles padecia de alguma surdez. E o carioca coloca na boca de Goulart estas palavras:

- Brasileiros, com Congresso ou sem Congresso, já determinei a meu ministro da Justiça que, de amanhã em diante, cada brasileiro receba o seu pedaço de terra para cultivar.

A multidão urrou de alegria. E o quase surdo perguntou ao amigo que cousa o presidente havia dito. O amigo deu a explicação e o quase surdo gostou muito da ideia.

- Brasileiros, com Congresso ou sem Congresso, já determinei a meu ministro da Justiça que, de amanhã em diante, ninguém mais neste país paga aluguel de casa.

A multidão berrou. E o quase surdo perguntou ao amigo o que havia dito o presidente. O amigo esclareceu. O quase surdo gargalhou, vitorioso.

- Brasileiros, sustentou Goulart, com congresso ou sem Congresso, já determinei ao meu ministro da Justiça que, de amanhã em diante, funcionário público só trabalha UM MÊS durante o ano.

A multidão delirou, em fúria. E o quase surdo quis saber do amigo sobre a fala do presidente. O amigo lhe transmitiu a ordem presidencial. O surdo exultou, chorava de rir, enfim perguntou:

- Amigo, e sobre as férias, que que ele disse?

A piada inteligente foi criação do carioca, para mostrar que este país caiu na pagodeira e ninguém mais quer trabalhar.


A. Tito Filho, 18/10/1988, Jornal O Dia.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

POESIA

Vale à pena a gente ler os bons poetas, para alimentação do espírito e da inteligência. Dante escreveu versos maravilhosos. Mostrou a maldade, a injustiça, a cupidez no século XIII. Para ele a corrupção provém dos maus governos, assertiva absolutamente verdadeira. Que dizer de Camões? No seu extraordinário poema sobre Portugal, compreende com invulgar inteligência os fenômenos históricos e coloca na dependência do dinheiro a moral, a amizade, o amor, a virtude. Condenou a parcialidade dos legisladores e reagiu contra o desumano mundo feudal. Em Shakespeare existe conjunto homogêneo de imorredoura poesia, inspirada em temas populares. Não esquecendo os males do capitalismo. Revela constantemente a falsidade das mulheres fúteis. Mostra a inutilidade da violência e condena as ditaduras.

Demonstra o papel do vil metal na submissão dos pobres pelos ricos. Milton no Paraíso Perdido torna-se delicioso quando se volta contra as desigualdades sociais. Poeta de todos os séculos. Byron exigiu uma sociedade igualitária. Imenso esse Walt Whitman, norte-americano. Lúcido, fez poemas para as massas populares, cantou-as, lutou contra a escravatura. Amava as prostitutas, as pobrezinhas dos bordéis que se obrigavam ao triste comércio da carne. Gonçalves Dias, cantor maranhense do índio e da floresta, fez poesia cheia de mar e de lirismo.

Gosto de Edgar Allan Poe, que sofria de enfermidade da dúvida. Nostálgico. Amava o álcool. Nunca vi poder mental de tamanha imaginação. Admiro o Manuel Bandeira, de grande capacidade de sofrimento nas febres, nas hemoptises, nas dispnéias, nos suores noturnos, na tosse - na tuberculose insuportável mas geradora de criações permanentes na história brasileira.

O Piauí possui poetas que me fascinam. Não vou citá-los por medo de ser injustos, esquecendo alguns dos que julgo da melhor criatividade.

*   *   *

Leio agora as poesias, reunidas em livro, sob o titulo Exíguas, do padre Osvaldo Chaves, cearense, poeta como poucos, e que me encantou de lirismo emotivo e sobremodo da inteligência superior para colocar os versos a serviço de temas sociais do passado e do presente - aqueles temas que ele tira das imagens da própria infância, dos cenários da terra, na descrição das cidades loucas dos novos tempos, no sofrimento do homem explorado, no civismo, nos exemplos cristãos, na crença espiritual, nas terríveis angustias do mundo guerreiro e noutros temas da vida.

Sacerdote cristão, os versos de Osvaldo Chaves ganham mais beleza quando se impregnam da religiosidade simples dos que tem fé, dos que fazem a caridade e guardam esperança em Deus.


A. Tito Filho, 22/03/1988, Jornal O Dia.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

GENTE

Licurgo José Henrique de Paiva nasceu em Oeiras (PI), 1844. Estudou humanidades na capital pernambucana, em cuja Faculdade de Direito deveria matricular-se. Abandonou os estudos, dedicando-se a vida literária e à boêmia (assim, BOÊMIA) descuidada e permanente. Voltou ao Piauí e teve morte prematura, pelo abuso do álcool, no município de Jerumenha, em 1887. Publicou FLORES DA NOITE (poemas). Deixou dois dramas inéditos. Exerceu também o jornalismo.

Antônio Ribeiro Gonçalves nasceu em Amarante (PI), 1877. Faleceu no Rio de Janeiro, 1928. Médico, com prêmio de viagem à Europa. Clinicou em várias cidades brasileiras. Fez estudos em hospitais de Lisboa, Paris, Viena e Berlim. Em Teresina, dirigiu a antiga Santa Casa de Misericórdia e lecionou no Liceu Piauiense. Foi deputado estadual e federal. Orador, poeta e jornalista. Publicou "Menores Delinqüentes", trabalho muito elogiado.

Pedro Alcântara de Sousa Britto nasceu em Oeiras (PI), 1882. Faleceu em Teresina, 1955. Na capital piauiense desenvolveu intensa atividade intelectual, como poeta lírico, irônico, sarcástico, panteísta. Jornalista. Polemista impulsivo. Mordaz e cético. De memória prodigiosa. Famoso repentista. Advogado. Vergastou com impiedade os políticos. Publicou "A Morte de Jesus" (poesias).

Carlos Eugênio Porto nasceu na Paraíba. Médico. Participou de diversos cursos sobre higiene, endemias rurais, vacinas, hematologia e poluição. Chefiou o Serviço Nacional de Malária do Piauí, prestando valiosos trabalhos ao Estado, na capital e no interior. No Rio de Janeiro e em Brasília desempenhou elevados cargos públicos no setor da medicina. Membro de diversas instituições nacionais e estrangeiras. Esteve presente a cerca de cinqüenta congressos no Brasil e no exterior. Publicou quase quarenta estudos científicos e manteve continua colaboração literária em jornais e revistas do país. À sua obra fundamental deu o nome de ROTEIRO DO PIAUÍ, livro que revolucionou as origens do nosso descobrimento, bem assim mostrou a fauna e a flora piauiense e revelou epidemias e suas causas principais. Carlos Porto integrou-se de corpo e alma na realidade piauiense e sobre o Piauí escreveu obra de leitura imprescindível para o conhecimento das nossas origens históricas. As páginas sobre pecuária são das melhores no assunto. Faleceu no Rio de Janeiro.


A. Tito Filho, 30/08/1988, Jornal O Dia.

IMPRENSA

Já escrevi sobre a imprensa de Teresina do século passado e as suas diversas fases. Os jornais de noticiário oficial e de registros de aniversários, óbitos, casamentos, nascimentos, noivados, viagens e viajantes. Surgiria a publicidade de escravinhas e escravos fugidos, passeios a cavalo, mercadorias parisienses, restaurantes. A politica passional, de ódios e malquerensas, iniciou dentro de pouco tempo o processo da xingação. Os correligionários não tinham defeito, os adversários padeciam toda sorte de acusações. Ao lado dos artigalhões desrespeitosos, publicavam-se produções de poetas e prosadores. No começo do século, polêmicas animadas de erudição constituíam a principal matéria para um público ainda pequeno de leitores. De modo geral as batalhas jornalísticas se travavam entre católicos, numa trincheira, e na outra os livre-pensadores, materialistas, ateus consumados, maçons. A imprensa cada vez mais melhorava de aspecto gráfico, mas a violência da linguagem politica persistia. As primeiras grandes reportagens se publicaram sobre a morte do professor Jarrinha, do motorista Gregório e do juiz Lucrécio Dantas Abelino, assassinados. Na década de 30, Cláudio Pacheco com o primeiro jornal de feição moderna, sobretudo caracterizado por uma linguagem nova, sem as costumeiras verrinas contra adversários. Campanhas políticas vibrantes se faziam por candidaturas à constituinte nacional e estadual entre 1934 e 1935. O oficial dos poderes públicos melhorava os processos de confecção, adotando linotipos. Tornou-se também noticioso, com a publicação de fatos da vida politica e social do Estado e todo o Brasil, transmitidos por via telegráfica. Chegaria 1937, com a feroz ditadura de Getulio Vargas e arrolhamento da imprensa até 1945, quando José Américo de Almeida rompeu a severa censura imposta a jornais e jornalistas e desencadeou-se a luta pela presidência da República e por assento na assembléia constituinte inaugurada em 1946. O Piauí participaria dessa luta de políticos dos vários partidos criados, e entre dois deles se repartiam as preferências dos piauienses - o governista, também chamado Partido Social Democrático e o oposicionista de nome União Democrática Nacional. Em Teresina vieram a tona dois jornais, que abrigavam artigos severos, fortes, apaixonados contra os homens da facção contrária. Voltava-se aos velhos tempos. Não se poupavam as lideranças partidárias. Esses caminhos vigoraram a partir de 1945 e persistiram durante umas duas décadas ou mais. Desde a fundação de jornais em Teresina até a década de 60, jornalista não recebia vintém pelo que escrevia.


A. Tito Filho, 11/09/1988, Jornal O Dia.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

EDIÇÕES

Pedro José da Silva, o popularíssimo Pedro Silva dos velhos, nasceu em Teresina, 1892. Morreu em 1974, no Rio de Janeiro. Músico, maestro, organizador, harmonizador e regente da Banda de Música do 25º Batalhão de Caçadores da capital piauiense, deu muita vida à praça Rio Branco que antigamente nas retretas do coretinho central. Muito novo, no começo do século, criou, com Jônatas Batista, o Clube Recreio Teresinense, que levou a cena, no respeitável Teatro 4 de Setembro, as peças NATAL DE JESUS e JOVITA. Esses dois piauienses tornaram-se as duas principais figuras da vida teatral de Teatral de Teresina durante anos. Entre 1917 e 1925, essa tradicional casa de espetáculos viveu grandes e ruidosas temporadas com as revistas de Jônatas por Pedro musicadas, como O BICHO, sátira ao popular jogo criado pelo Barão de Drummond, no Rio; FRUTOS E FRUTAS, O CORONEL GALANTE, entre outros. O ativo maestro ainda fundou o PALACE, na praça Rio Branco, animada casa de diversões de muita posteriormente arrendou o Teatro de 4 de Setembro, quando trouxe a Teresina célebres companhias teatrais. Passando a residir no Rio, trabalhou em estações de rádio, época em que difundiu demais o folclore piauiense. Dedicou grande parte da velhice a descrever os tipos, as cenas, os costumes, a religiosidade, as festas de São João, o ciclo do natal, as danças típicas e os gêneros musicais do Piauí - e confiou o trabalho à Academia Piauiense de Letras e esta o entregou a Secretaria de Cultura. Em 1987, localizou-se a obra de Pedro Silva. Confiei-a à Fundação Cultura Monsenhor Chaves, na pessoa de sua ilustre presidenta, o livro foi editado com o titulo de O PIAUI NO FOLCLORE, trabalho assaz oportuno e necessário.

O conto foi pouco cultivado na literatura piauiense do passado. Parece que o primeiro em salientar-se nesse gênero se chamou Francisco Gil Castelo Branco. Seguiram-se outros contistas como João da Cruz Monteiro, João Alfredo de Freitas, João Licinio de Miranda Barbosa, Arquelau Mendes, Julio Emílio de Paiva Rosa, surgiram depois Amélia Bevilaqua e Clodoaldo Freitas. Perto do nosso tempo se encontra Esmaragdo de Freitas, Álvaro Ferreira, Fontes Ibiapina, para que se registrem somente os mortos, no meio dos quais cumpre colocar João Pinheiro, que se serviu de acontecimentos reais e retratou caracteres físicos sertanejos. Agora surgiu Alvina Gameiro, com CONTOS DO SERTÃO DO PIAUÍ, narrativas de episódios e acontecimentos. Talentosa e de superior engenho, a escritora localiza os seus panoramas no chão desta terra piauiense.

Raul Furtado Bacellar publicou PALAVRAS A AMIGOS, que reúne escritos e concepções de quarenta ou mais anos passados, num retrato social e histórico de Parnaíba no Piauí. Estilo seguro, firme, visão ampla de pessoas e acontecimentos, fiel à memória dos fatos e das personagens que os viveram. O capitulo VIAGEM A MANGABEIRA possui aspectos descritivos e narrativos de mestre. Uma excursão deliciosa e contada com superior inteligência.


A. Tito Filho, 10/09/1988, Jornal O Dia.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

ALVINA DE NOVO

E conheceu um sujeito de nome Argemiro Gameiro, carioca de nascimento. Ele andava teresinando, em missão educativa. Engenheiro e arquiteto ilustre e de muitos títulos. Armazenador de abundantes lições culturais. Nascido para o amor do próximo.

Casaram-se Alvina e Argemiro. Ela encontrou o segundo exemplo para quem puxar, dentro de casa, no talento e no bom gosto do marido. Sensível, amorosa, esposa dedicada, mãe amantíssima, bondade excessiva com os outros, amiga sem defeito, paciente, meiga, sempre realizou o ideal de bem servir, ao lado do cultivo da literatura e da pintura. Na prosa e na poesia concebeu uma obra animada do toque de artista verdadeira, e a escreveu com muito bem-querer, para fixar a terra, os tipos humanos, os costumes, os hábitos, os caracteres da gente perdida nos pequenos núcleos, do mundo nordestino. Isabela, magistral tipo interiorano, se incorporará às mais notáveis figuras femininas da criação literária brasileira.

O ponto alto deste "Curral de Serras" é a fixação da linguagem desses trechos humanos sem contatos com o progresso e com as transformações dos modos de viver dos povos.

A linguagem dos homens se manifesta por processos vários. Há a literatura, polida, asseada, rica, regida por preceitos gramaticais; existe a usual, despoliciada, de todas as horas, a linguagem chã, planiciana, de estragos fonéticos, governada pelo menor esforço, aquela que é veiculo de entendimento geral. Adiante, a linguagem dos gestos - dos dedos, da cabeça, do piscar dos olhos. E ainda a gíria, por via da qual o povo ironiza pessoas e episódios, e estabelecem relações entre os objetos, a gente e os fatos. E mais: o processo da linguagem emotiva e o do calão. E também uma maneira especial de comunicação, de causas profundas - um modo de ser representado pelo linguajar das pequenas paisagens populacionais, de reduzidas comunidades de povo, de lugarejos e vilas - um processo alatinado, cheio de encanto, de originalidade, de sabor ingênuo, conservado, inconscientemente, durante anos a fio, pelos habitantes desses arraiais, em virtude da segregação e da distancia.

Alvina fotografou essa linguagem que se mantém no caipira, no matuto - e a grande escritora oferece mais ao leitor um correto glossário, de natureza explicativa, tão integro quanto a ciência que a autora tem do material lingüístico estudado.

Raras vezes a vida literária nacional recebe obra de lavor e de encanto, a modo deste "Curral de Serras", romance ímpar, obra-prima de criatividade e documento da expressão sincera do caboclo nordestino.

A última obra de Alvina Gameiro tem o nome de "Contos Regionais Brasileiros", lançada em 1988. Profundo telurismo.

A. Tito Filho, 10/11/1988, Jornal O Dia.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

MENTIROSOS

As estórias fiadas dos grandes mentirosos estão incorporadas ao folclore das coletividades. Ouvi muitas dessas narrativas no interior e li-as depois em livros de estudiosos dessas interessantes e curiosas manifestações populares. Em Teresina meu querido e inesquecível Mário José Baptista contou o episodio de um macaco que ele ensinou a pular com extraordinária perícia. Se o bicho saltava de um galho para outro e no meio do caminho se arrependia, o referido esperto animal fazia finca-pé no ar e facilmente retornava ao local de origem.

É comprida a coleção das lorotas humanas. Homens e mulheres têm imaginação fértil, sobretudo estas quando ajudam os maridos nas cabeludas mentiras.

Tornou-se vulgarissima em Minas a conversa de Joaquim Bentinho com os dois amigos que o visitavam e aos quais ele contou que um dia, quase boquinha da noite, sentado à porta da casinha tosca daqueles perdidos no interior mineiro, viu no descampado, ao longe, um vultozinho. Coçou os olhos, reparou direito, era um veado. Agarrou a espingarda, carregada só com um cartucho. Fez a pontaria segura, e houve o papouco. O bicho deu salto, bateu no chão e imobilizou-se. Bentinho buscou a caça, estava morta, rasgo de bala no casco e na orelha. Os ouvintes admiraram-se: uma bala só, dois buracos? A mulher por perto não deixou que o marido mentisse:

- Tu não se alembra que o animá tava coçando a orêia?

Gustavo Barroso encontrou essa rabuda mentira entre os campônios de França e do folclore de outras gentes anotou invencionices que os nossos matutos também contam.

Lembro-me do bom Capivara, caboclo que tomava conta de um sitio de meu pai, nos arredores de Barras, neste Piauí famoso. Bebedor permanente de cachaça, calmo, tranqüilo, Capivara nunca deixou de deliciar as pessoas, na choupana modesta onde morava como caseiro, encarregado do cajual, das mangueiras e outros pés de frutas, com mentiras bem contadas.

Ouvi uma delas, certa vez, e a encontrei como estória matuta do sertão brasileiro em Gustavo Barroso.

Capivara contava-a como cousa acontecida, verdadeira, segundo dizia, como Deus no céu. Ele gostava de criar papagaios. Conseguiu onze dessas aves faladoras. Nas novenas ouvia o padre rezar a ladainha, com as beatas na ajuda, vozes fanhosas. Achou que os papagaios deveriam aprender esse hino religioso e tratou logo de efetuar a ensinança. O mais velho dos papagaios cantava o verso do cântico bonito em louvor da Virgem Maria, e os dez papagaios mais novos respondiam o ORA PRO NOBIS. Uma maravilha.

Há mentirosos de todo tipo.


A. Tito Filho, 10/06/1988, Jornal O Dia.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

GENTE ORIENTAL

Moysés Castello Branco Filho realça a presença, de sírios e libaneses em Teresina, no princípio do século XX, dedicados aos comércio de miudezas e de modas. Principalmente sírios. Sírios na quase totalidade. Vinham de longe, da Síria, onde é gritante o contraste entre a riqueza e a pobreza. O padre Luciano Duarte diz que lá a terra tem cor amarela, queimada de calor. "Não há vegetação. Apenas areia e pedra - mas de repente, sem lógica, no meio do quadro - um oásis. O milagre da água correndo, límpida e cantante, da fonte que Deus fez brotar, vestindo de verde a terra nua, estendendo a sombra das palmeiras para os homens cansados".

A Síria lembra Damasco, "a Damasco de ruas apertadas do comércio de miudezas, quiosques, ruelas escuras e sujas, em que o visitante sempre compra pela metade do preço. Paga e sai com ares de quem ganhou uma batalha. E o sírio lá ficou, impassível, contente, pois o preço pago, ao cabo de contas, ainda vale três ou quatro vezes a mercadoria".

Terra de contrastes, de povo inteligente e trabalhador - não estará nisto uma das razões pelas quais os sírios tão bem se localizam no Nordeste, comungando com os nordestinos as angústias da terra que se povoa, de milhares e milhares de miseráveis nascidos nestes pedaços de Brasil?

Os sírios e libaneses assimilaram nossos costumes, hábitos e vivencias, e integraram-se na sociedade teresinense casando-se, multiplicando-se, educando a prole, progredindo pelo trabalho e valorizando o chão que os abrigou fraternalmente.

Dos árabes em geral disse Gustave Le Bon: "Uma grande urbanidade e doçura, uma grande tolerância com os homens e as cousas, a calma e a dignidade em todas as situações e circunstâncias e uma notável moderação de necessidades, tais são os traços característicos dos orientais. Sua conformação moral com a vida, tal como ela se apresenta, dotou-os de uma serenidade muito semelhante à ventura, ao passo que as nossas aspirações e necessidades fictícias nos tem levado a nós a um estado de inquietação permanente muito diferente do deles".

Na história do cinema em Teresina muitos nomes são dignos de notar, como Nauman, Bluhm, R. Coelho, R. Fontenele, Pedro Silva, José Ommati (sírio) e de Farid Adad, também sírio, que fixou residência em Parnaíba (1919) e ali, com o irmão Miguel fundou o cinema Eden. Em 1930 esta casa exibidora iniciava a era do filme falado da capital piauiense, inaugurando-o em 23.12.1933. A 25.11.1973, encerraram-se as atividades cinematográficas na velha casa de espetáculos da praça Pedro II. Farid havia falecido no ano anterior. A cidade o conhecia pelo nome de Alfredo Ferreira, casado em primeiras núpcias com Farisa Salim Issa, sua patrícia, de excepcionais virtudes deixou vários filhos.

Depois de Alfredo Ferreira, outros empresários prosseguiram no trabalho de dotar Teresina de confortáveis cinemas.


A. Tito Filho, 06/12/1988, Jornal O Dia.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

IMPRESSÃO

Com o título A POESIA VEM DO PIAUÍ, Ribeiro Ramos expressão das letras cearenses, mandou-me este comentário:

"Com esplendidas ilustrações de DENA (uma artista!) tenho entre as mãos e diante de meus olhos o livro de versos de Nelson Nunes, cuja leitura acabo de fazer. Na Boca do Vulcão, oferta amável de meu dileto amigo, Acadêmico Professor A. Tito Filho, eminente e extraordinário Presidente da Academia Piauiense de Letras, intelectual de altos méritos e um gentleman perfeito.

Agradecendo o gesto delicado de Tito Filho confesso o prazer espiritual que me deu a companhia amável do poeta vulcânico, ouvindo-o cascatear os seus poemas, pequeninos e breves, de diáfana forma concretista, verdadeiras jóias filigranadas que fulgem no espaço em poeira de luz. CRENÇA, HOMINE, ESTAESTÁTUA, A CINDERELA, EXPIAÇÃO; NA BOCA DO VULCÃO - que dá nome ao livro - FLASH NOTURNO, mostram bem a Arte Poética de Nelson Nunes, cultivada na juventude e que ele, esteta que é, eleva e sublima à aproximação da mocidade para lhe sugerir, quem sabe? Novas formas poéticas.

Quer-me parecer que assim pensa, talvez, crítico do poeta, escritor Paulo Machado, ao escrever, na orelha do livro: ‘... as experiências não discursivas conjugadas com os exercícios de aperfeiçoamento da linguagem poética destinam-se aos leitores participativos. Estes poemas, felizmente, não foram escritos sob a carga estatizante que conduz à formalização estéril, por isto são obras de arte abertas e contaminadas pelas impurezas sociais’.

Desde menino aprendi a querer bem ao Piauí e a amar a sua gente. Um bem-querer nascido do coração e que alimentei toda a vida, fazendo-o crescer ao longo dos anos, sobretudo depois que, muito jovem, fiz os primeiros amigos ali nascidos e quando, mas tarde ainda, pisei pela primeira vez a terra abençoada da vizinha Província, mãe venturosa e fecunda de tantos filhos ilustres que se agigantaram no panorama da Inteligência Brasileira.

Um vulto sagrado no despertar desse grande amor: Da Costa e Silva, o Poeta Maior, nas páginas de uma Antologia, que o mano e Mestre José Waldo me pôs nas mãos, na aula de Português. Li e decorei SAUDADE, cujas estrofes me seduziram tanto, enchendo-me a alma de harmonia, encanto e beleza. E a saudade me pungia o coração todas as vezes que os meus lábios murmuravam: 'Saudade Olha de mãe rezando', pois que era assim que eu imaginava minha própria mãe debruçada sobre o meu berço na hora extrema do último adeus...

E a evocação! 'Saudade! Asa de dor do pensamento!'. E, por fim, no último terceto as lindíssimas estrofes finais:

'Saudade! O Parnaíba - velho monge,
As barbas brancas alongando... E, ao longe,
O mugido dos bois de minha terra'.

Fugindo ao sortilégio dessas dulcíssimas recordações, que sempre magoam, volto à presença amiga de Nelson Nunes, para lhe bater as minhas palmas calorosas e fraternas pela excelência de seus versos e sobretudo pelo primor e encantamento e beleza de:

ABERTURA

Não há muro tão consistente
que não possam atravessá-lo,
a água, o musgo e o poema’.

Gostaria de ver um dia Nelson Nunes, distanciado do Concretismo, cultuando a sua sedutora Arte Poética em outras áreas, talvez, como quer Paulo Machado, na busca ‘individual de atualização estética’. Creio que valeria o esforço”.


A. Tito Filho, 10/12/1988, Jornal O Dia.

domingo, 19 de dezembro de 2010

APERTAÇÃO - II

Prossigo. Hoje a segunda parte do almoço de que fizemos parte o anfitrião José Carlos Alencar, os jornalistas José Fortes Filho, a simpática Iara Osana, eu e minha cara-metade no Hotel Rio Poty, cinco estrelas, luxuoso, revolucionário, que só perde para os hotéis de cearense, em Fortaleza, de seis, sete e oito estrelas. Estávamos justamente no momento da leitura do MENU, que os tupiniquins conhecem pelo nome cientifico de CARDÁPIO. Cada comensal fez que lia a enorme lista de comedorias. Olhavam-se com o rabo do olho. Ninguém entendia patavina das iguarias relacionadas. Havia CANAPÉ DE REQUIN, FILET MEDITARRANÉ, BROCHETES DE FOI VOLAILLÉ, PORC ROTI A LA LUSITAINE, DINDONNEAUX FARCI A L'AMERICAINE, POISSON DELICIEUX, PETIT AMOUR VERA FISCHER e outros pratos de bom paladar, como explicava o paciente e educado amigo de roupa preta comprida, o MAITRE, que nos anunciou o primeiro sortimento, o HORS-D'OEUVRE, uma iniciação picante para abrimento do apetite: ingredientes pastosos, azeitonas, paezinhos redondos, roscas de trigo, manteiga e uma riquíssima quantidade de ovos de codorna, já descascadinhos. O supervisor do excelente restaurante nos achou a todos de certa idade e carregou na codornização do ambiente.

Desde meninote me acostumei com comida de panela, que a saudosa negra Francisca, funcionária-chefe da cozinha de minha tia Honorina Tito, preparava com banha de toucinho, muita cebola e pimenta-do-reino. A saia-velha de muito vinagre, o cozidão com abóbora e osso de boi rico de nervuras e rejeitos, caldo abundante e pirão de farinha de mandioca, a paçoca bem acebolada, a mão-de-vaca de muito tutano. Me lembro dos arrotos gostosos que a gente soltava, de pança cheia, pecadores da gula, tomando pito pela falta de educação.

Nos banquetes de meu tio Antenor Rego, na velha e pacata Barras do Marataoã, apareciam uns trinta pratos de diferentes tipos, como aquele oferecido ao antigo governador Helvídio Nunes, constituído de vatapá, galinha de molho pardo, galinha ensopada, torta de carne, costela de porco e de carneiro, macarrão, lingüiça, peru, leitão, lombo, e outros pratos, cousa principesca, de encher os limites das barrigas famintas.

Os cinco participantes da encantadora reunião no restaurante do Hotel Rio Poty continuavam em busca de uma solução. Dos cinco só José Carlos Alencar conhecia língua estrangeira, em viagens jornalísticas por esses espações do mundo. Conhecia a língua de Lollobrigida e de outras celebridades femininas dos Estados Unidos, da Grécia, de França. A gente notava que ele não queria mostrar sapiência traduzindo o francês do cardápio. O jeito estava no MAITRE de fraque comprido, lapelas luzentes, educado, simples, sorriso largo, paciente como frade de convento beneditino.

Amanhã eu conto o resto.


A. Tito Filho, 10/08/1988, Jornal O Dia.

IMPRENSA

Teresina tem seus cento e trinta e cinco anos, desde que na cidade circulou o primeiro jornal. E durante mais de um século, as nossas folhas periódicas não gastavam com o trabalho de noticiaristas e redatores, ou com poetas e prosadores que publicavam produções literárias nos órgãos de comunicação.

Faziam-se os jornais catando nas pranchas letra por letra, cada tipo era um desenho do alfabeto e havia tipos destinados aos sinais de pontuação. Um trabalho dos diabos. Publicavam-se os atos do governo, anúncios de novidades, notícias de viajantes ilustres que saiam da cidade e que a ela retornavam. O público recebia um prato recheado, que muito o contentava: os terríveis xingamentos entre homens de partidos adversários, de ladrão para pior. Nada se respeitava, ao menos a vida privada dos cidadãos. Salvavam-se as mulheres, que estas eram inxigáveis, sob pena de correr sangue.

Nos primeiros tempos do novo século deu-se a luta entre nações e ateus de um lado, do outro o clero católico - luta que teve raízes na Escola do Recife, em que se projetara Tobias Barreto e Silvio Romero, para citação dos maiorais. Travavam-se polemicas acirradas e que se perderam nas páginas dos órgãos de imprensa desse agitado tempo teresinense, sustentadas por Clodoaldo Freitas, Higino Cunha, Abdias Neves, dos mais ilustrados, e por padres abnegados na defesa dos ideais cristãos sobressaindo Joaquim de Oliveira Lopes - lutador sereno, imperturbável, no julgamento criterioso de Cristino Castelo Branco, que conta: "A tais extremos chegou a luta, que o sacerdote foi injuriado e agredido dentro da igreja de Nossa senhora do Amparo, no púlpito, quando pregava".

Conta Cristino que os estudantes acreditavam que ser católico equivalia a ser burro. No romance "Um manicaca", Abdias Neves pôs na boca de personagem a afirmativa: "Nem todo burro é católico, mas todo católico é burro". Havia muita paixão, circunstância que cegava os homens e levava-os a clamorosas injustiças contra os de batina.

Passada a primeira década do século atual, as condições da imprensa teresinense tiveram, do ponto de vista ético, sensíveis progressos. Pessoas sem ódios e malquerenças começaram a orientar as nossas folhas, sem que se evitassem, vez por outro, os excessos, mais agressivos nas épocas de campanhas eleitorais. Então se exarcebavam os ânimos e as lavagens e descomposturas nos adversários se tomavam de intensidade. O destempero não constituía prerrogativa da imprensa teresinense, mas contagiava o jornalismo nacional, incluindo-se as campanhas desabrigas no Rio de Janeiro, a exemplo da que se fez contra Hermes da Fonseca e Artur Bernardes.

Assim foi nossa imprensa até pouco depois de 1930. Nova fase haveria de surgir, quando se criou a Associação Piauiense de Letras, a primeira entidade que discutia assuntos relevantes sobre jornais e jornalistas de nossa Teresina e do Piauí.


A. Tito Filho, 10/04/1988, Jornal O Dia. 

sábado, 18 de dezembro de 2010

CARNEVIVA

Existem virtuosos e inteligentes padres hoje inteiramente esquecidos e até desconhecidos dos teresinenses, como Acilino Portela, vigário da igreja do Amparo e falecido em 1941. O padre Áureo de Oliveira, diretor de educandário, esteve a frente do templo de São Benedito. Fui seu aluno do Colégio Diocesano. Era entroncado, beiços grossos, professor de francês. Monsenhor Constantino Boson, nascido em São Raimundo Nonato (PI), meu padrinho de batismo. De muito latim, virtuoso, exerceu elevadas funções. Erudito. Dirigiu o Colégio Diocesano, doutor na arte de aplicar sonoros bolos de palmatória. Muito trabalhador. Apreciava a boa pinga. O culto Cícero Portela Nunes, poeta também e jornalista, que quase governava o Piauí. O humilde frei Heliodoro, italiano de origem, confortador de pobres e doentes. Tornei-me amigo do padre Nonato, meu velho mestre de português, vigário da catedral das Dores, pobre e bondoso. O bom do padre Rego, que morreu atropelado, e o talentoso Raul Pedreira. O manso e estudioso Monsenhor Melo. Conheci-os e admirei-os. Todos estiveram durante pouco ou longo tempo a serviço dos teresinenses.

Houve os que viveram antes de mim. O pacificador e querido monsenhor Raimundo Gil. O lutador Joaquim de Oliveira Lopes, corajoso, firme nas convicções. O cônego Raimundo Fonseca, escritor, sacerdote de grande erudição. Frei Serafim, inesquecível no coração dos teresinenses, benemérito da cidade, construtor da igreja de São Benedito. O cônego Tomás Rego, orador, intransigente na defesa do Catolicismo.

Teresina incorporou à sua história a vida e a obra do padre Mamede Antônio de Lima, vigário da Vila do Poti e o primeiro vigário da igreja de Nossa Senhora do Amparo e o que nela celebrou a primeira missa, sobre quem brevemente faremos uma destas crônicas despretensiosas.

Não conheci o padre Cirilo Chaves Soares Carneviva e muito já pesquisei sobre a vida deste sacerdote, substituto do pensador-livre Clodoaldo Freitas da Academia Piauiense de Letras.

Cirilo nasceu em Teresina e muito novo, aos 30 anos, faleceu no Rio de Janeiro, 1936. Filho do tenente-coronel do Exército José Joaquim Soares Carneviva, que se notabilizou na guerra do Paraguai.

Sacerdote culto, educador, orador sacro de projeção. Poeta muito festejado.

Consegui saber que serviu na igreja do Amparo da capital piauiense.

Ingressou na Academia Piauiense de Letras em 1925, recebido por Jônatas Batista, que o considerava íntimo das musas e orador sacro de imensos recursos. Fazia belos sermões de improviso. Dono de palavra fácil e fluente, viva e forte, de imagens sempre novas e sempre encantadoras.

Pena que a cidade guarde pouca cousa da memória desse padre que, durante pouco tempo, brilhou na vida intelectual de Teresina.


A. Tito Filho, 09/06/1988, Jornal O Dia.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

VIAGEM

Joaquim Nogueira Paranaguá exerceu os mandatos de deputado e senador do Piauí. Muito lutou pela mudança da capital da República para o Planalto Central Brasileiro. Esteve à frente do governo piauiense quase três meses, como substituto eventual, em 1890, quando deu substancial contribuição para as obras do Teatro 4 de Setembro de Teresina.

Em 1892, esse conterrâneo ilustre deixou o Rio de Janeiro, capital do país, em busca dos seus pagos no Sul desta terra dita de Mafrense. Resolveu viajar pelo interior brasileiro, quando normalmente políticos e estudantes iam em busca da cidade grande e voltavam aos penates em navios mercantes até São Luís e daí viajavam para Teresina por terra, de cavalo, ou de trem de ferro.

As impressões de Paranaguá foram reunidas em livro em 1905. Faz poucos anos fiz segunda edição, que agora reli. Não perdeu a graça e a vivacidade. Para mim, tem significação especialíssima, pois na mocidade percorri esses compridos caminhos, com alguma diferença de roteiro, mas de cenários maravilhosos.

Extenso o percurso vivido e descrito nas páginas do livro. Vário o meio de transporte. Comboio ferroviário, barca, navio tipo gaiola, cavalo. Andança muitas: Estado do Rio, Minas, Bahia. Do longo roteiro, das dificuldades encontradas e vencidas, da boa bóia, da hospitalidade interiorana, das maravilhosas vistas resultou a narrativa sincera, cuja leitura entusiasma na recordação de um tempo de belezas espirituais, convivência amiga, diferente destes dias que correm, violentos e aflitivos, como se o fim do mundo se aproximasse.

Médico, político, parlamentar, educador, homem de ciência, caráter reto, hábitos severos, Paranaguá exerceu o jornalismo e cultivou as boas letras, do que dão testemunho e reportagem e o estilo leve do viajador, numa obra que convocava os brasileiros para os recursos nacionais riquíssimos e perdidos na vastidão nacional.

Desfilam no trabalho aspectos históricos e sociais, costumes comunitários, quadros naturais, comércio e indústria, riquezas minerais, bichos, aves, plantas, transportes. Muitos temas, páginas de ensinamentos, lições da vida. E mais a harmonia de idéias com o que estas representam, pela beleza, característica do modo de sentir, pela decência, que consubstancia o fundo da intenção. Em todo o modo claro de dizer e de convencer.

Joaquim Nogueira Paranaguá doou-se aos semelhantes em benefícios sem conta. Disse dele o filho Correntino Nogueira Paranaguá: "Sua presença continua e continuará a existir como um farol de altruísmo, perseverança e honradez, enquanto houver memória de sua personalidade, simultaneamente forte e suave, combativa e conciliadora, equânime na prosperidade como na adversidade, digno e simples nos elevados cargos que ocupou no meio do povo humilde que viu e chorou o seu encontro com a eternidade".

Retrato bem feito.

Leiam o livro de Joaquim Nogueira Paranaguá. Páginas agradáveis, saborosas, mostrando um Brasil pobre mas feliz, um Brasil que foi convivência leal, o que ele nunca mais será. A máquina gerou a perdição.   


A. Tito Filho, 09/07/1988, Jornal O Dia.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Apertação - I

O convite partiu desse conterrâneo inteligente e dedicado, jornalista de bom conceito, José Carlos Alencar, de "O Globo", do Rio. Almoço no Hotel Rio Poty - eu, minha mulher Delci Maria e os confrades José Fortes Filho e Iara Osana. Um dia especialíssimo em restaurantes CINCO ESTRELAS, que só perde para os SEIS, SETE e OITO ESTRELAS de Fortaleza. Fomos recebidos à porta da vistosa e revolucionária hospedaria por um almirante, de capacete brilhoso. Reconheci nele meu bom compadre Chico Bocó, metido numa impecável fardação. Enfiamos na primeira sala, depois noutra e assim percorremos umas seis, ricamente aparelhadas, com cavaleiros e cavalheiras aos cochichos, pelos cantos, na parecença de que tramavam um golpe para ganho de eleição prefeitural. Em todas, muitos homens fardados à moda russa, batendo continência para nós os convidados. Gostamos do maravilhoso recepcionamento. Por fim atingimos o imenso salão onde funciona o restaurante, de mesas enfeitadas, tudo limpo, convidativo, grau dez. Tomamos uma das mesas. Chegou ao nosso território de bom gosto, de toalha alvíssima, galhetas de todo tipo, um cidadão de casaca, lapelas brilhantes, gravata borboleta. O paletó semelhava batina de padre velho, comprido como quê. Então houve os cumprimentos de praxe do funcionário hoteleiro, tipo saudável, gentil, sacerdotal a quem a coleguinha Iara Osana, depois de benzer-se, pediu a benção. Fomos agora cercados por cinco graduados, cada um de comprido livro parecido com partitura de orquestra sinfônica. Tratava-se do MENU. De mim estava abismado. Andei por Fortaleza e Rio de Janeiro e só habitei pensão ordinária de restaurante, sem luxurias e confortações. Julgava-me no céu, num ambiente novo, despoluído, em que me sentia bem, compensado da dura vida de assalariamento tipo classe média de degrau inferior.

Abrimos os livros das refeições. E cada qual de nós ficou a fazer que lia, calado, passando o rabo do olho pelo companheiro.

Lembrei-me dos meus antigos e recentes momentos nos restaurantes de Teresina. Vieram-me à mente o Gumercindo, criador do filé de chapa, que se trabalhasse em França, teria ganho o Premio Nobel de comedoria; o João Bebé, o Ludgero, o Filomeno, eximios na arte das feijoadas com pé de porco e rabada à lá Toinha Arêa Leão. Recordei-me do frege do Doutô, especialista em panelada e mão-de-vaca, muita pimenta, cachorros gafentos brigando por debaixo das mesas para a agarração das ossadas que a gente limpava nos dentes, limpinhos de dar prazer, depois de engolir com boa farinha o tutanão interior, que escorria gordurento pelos cantos da boca. Não pude também esquecer o velho e bom Pedro Quimino, que enriqueceu e se retirou do ramo e cujo cozinheiro preparava uma língua que a gente comia em dobro como bispo em desobriga. Amanhã eu conto o resto.


A. Tito Filho, 09/08/1988, Jornal O Dia.

CHATOS

José Vieira Chaves já fez a viagem de ida sem volta. Foi dos meus melhores amigos. Tinha mal o curso primário e dava conta do recado de jornalista com desenvoltura. Sujeito inteligente, de boas idéias. Não suportava o CHATO, viesse de onde viesse. Catalogava vários tipos doutores na amolação do próximo. Um dia me mostrou comprida lista desses indivíduos que nasceram para tirar o sossego alheio. Fiz expressiva relação de CHATOS E CHATAS e estudei-lhes as maneiras de atuação. Publiquei, no jornal dirigido por Chaves, o meu estudo, nos idos de 1952, por aí assim. Anos depois o público ledor se deliciava com o livro TRATADO GERAL DOS CHATOS, de Guilherme de Figueiredo, excelente repositório de figuras da chatice universal. Muitos chatos de minha catalogação foram desconhecidos do excelente escritor citado, que, no seu turno e fonte de observância, apresentou magote desses indivíduos ausentes das minhas preocupações.

Os chatos farejam as vítimas. Ficam nas esquinas, nas calçadas, junto à banca dos jornais a aguardá-los munidos de infalíveis na liquidação da alegria de quem deles se aproxima. Há-os de variada espécie. Os receitadores de remédios e alguns chegam a escrever o nome da droga e enfiam o papel no bolso do pobre diabo. Os poetas recitadores em mesa de botequim. Os que contam velhas anedotas e eles mesmos gargalham felizes. Os vendedores de livros e os cobradores. Os elogiadores: "Você é quem brilha", "Não conheço talento como o seu". Os prestativos, que se dizem amigos do peito do governador, para a solução de casos. Os discursadores de festas: quando a orquestra ataca um samba do bom, o sujeito pede a palavra e solta as asnices. Os oradores fúnebres: saltam sobre o monte de terra a beira do túmulo e sapecam o verbo choramingueiro. Os chatos dos projetos de cidadania, indivíduos puxa-sacos. Existem uns que conversam dando empurrões no ombro da gente ou tapinhas em qualquer parte do corpo. São inaguentáveis. Terríveis os consertadores de objeto. Nojentos os pregadores de moral: "Você precisa deixar de jogar, o jogo é a perdição da humanidade". E os visitadores de doentes: "Minha tia, o ano passado, morreu dessa mesma doença". Há os que conversam cuspindo na orelha do infeliz sofredor. Os chatos conquistadores conhecem todas as mulheres: "Aquela ali eu conheço, é de programa". Mentem como diabo.

Os amigos cronistas sociais também cultivam infalíveis processos de chateação, com as listas DAS DEZ MAIS,  as mesmas caras todos os anos. Existem as virgens que preferem a morte na fogueira a um gesto de amor: "Soube que a Maria se deita com o namorado. Que horror, Deus que me livre". Também as palestrantes de porta de rua, na base do EU SOUBE, QUE COISA HORROROSA. AS COROAS gostam de provérbios: "Coco velho é que dá azeite".

Faz certo tempo publiquei em livrinho minha coleção de chatos, em homenagem ao homem que, em Teresina, descobriu a poderosa força da CHATICE humana, o saudoso José Vieira Chaves.

Um chato sempre evita outro.


A. Tito Filho, 08/06/1988, Jornal O Dia.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

MALVADEZA

Não se pretende escrever a história da luz elétrica em Teresina, mas cabe a lembrança de alguns acontecimentos. Esse melhoramento de natureza social esteve, a principio, com empresa particular. A 17 de março de 1910, o banquete oferecido a Antonino Freire já recebia esse tipo de iluminação de Veloso, Santídio e Companhia. Só em 1914, no governo Miguel Rosa, o Estado assumia os encargos de proporcionar a eletricidade aos teresinenses. Engenheiro da Siemens, o cidadão R. Becker dirigiu os trabalhos. Máquina tipo Diesel. Dois geradores, três mil volts. Era domingo, 10 de maio, quando se deu a primeira experiência.

Corria o tempo. De vez em quando, as máquinas falhavam e a cidade passava à escuridão. Leônidas Melo, no seu longo período de governo, realizou reformas na usina. Vitorino Correia, major-interventor, adquiriu na Europa turbinas moderníssimas, que o governador Rocha Furtado, com duros sacrifícios, mandou montar e a capital passou a receber luz forte e boa. Depois de certo período, esse benefício, foi substituído.

Criou-se faz uns trinta ou mais anos o Instituto de Águas e Energia Elétrica, repartição dirigida pelo Estado do Piauí, origem de Centrais Elétricas do Piauí, Sociedade Anônima, companhia estatal conhecida pela sigla CEPISA, hoje alimentada pela poderosa Boa Esperança.

Tenho dito e repetido que Teresina possui apenas progresso material. De longuíssima data vegeta nos mais tristes e insolentes atrasos urbanísticos. Constroem-se mansões nos bairros ditos luxuosos, onde os marajás afrontam a miséria de habitações desumanas, mas nessas áreas inexiste um metro de esgoto. Ainda a cidade se serve dos matos adjacentes ou de buracos residenciais para os aperreios fisiológicos.

Urbanizar significa civilizar. A urbanização compreende um conjunto de processos materiais, espirituais, psicológicos, bom gosto e outros, que tornem as comunidades aprazíveis, de forma que a gente nelas se sinta feliz, satisfeito, no gozo de permanente bem-estar.

Faz poucos dias jovem e competente professor buscava a residência, pouco depois de meia-noite, onde teria o aconchego da família. Pois bem. No caminho, guiando a sua motocicleta, foi colhido por um fio da rede elétrica da famosa CEPISA e teve morte imediata, no meio da rua. Os jornais noticiaram o episodio, como cousa corriqueira, comum, que não causa estranheza. A quem responsabilizar pela perda de vida útil, pelas dores e aflições familiares? Pela irresponsabilidade de longa data na segurança das pessoas que percorrem as ruas de Teresina? Ninguém assume responsabilidade. O sujeito morreu, ganhou terra nos peitos, a vida prossegue, como se a cidade gostasse dessas tragédias.

Urge que a CEPISA retire esses fios perigosos das vias públicas e desembolse dinheiro para garantir a vida alheia. Verdadeiros cipoais cruzam Teresina, quando nos dias que correm a rede elétrica deve ser invisível.

Quantas pessoas a CEPISA já matou, irresponsavelmente?


A. Tito Filho, 07/10/1988, Jornal O Dia.

VIVIEN E OS NEGROS

Quem leu "...E o vento levou", ou assistiu ao filme que Selznick copiou do livro, pode sentir o problema negro nos Estados Unidos - um problema com raízes num processo econômico que mais se salienta com o correr dos tempos e que não se resolve com leis civis, humanas, é verdade, mas distanciadas da realidade. O problema, ali, só se resolve com a abolição da miséria no sul e da miséria do negro. As populações negras nos Estados Unidos vivem nas piores condições de existência. Dá-lhes a lei o voto, o direito de freqüentar escolas e universidades, proíbe a lei a segregação em todas as suas modalidades e disfarces - mas a lei não lhes dá trabalho nem meios de auferir os benefícios da civilização dos brancos.

O presidente Johnson quis tocar na angustia do problema. Para ele, tudo deriva do desemprego, da doença, dos bairros pobres de miséria extrema: "Não é possível conter os insurretos pela força, mas é possível a extirpação das causas dos acontecimentos". Embora com tais verdades, Johnson não tinha razão. Esteve o falecido presidente em atendimentos para uso interno. Entendeu o caráter revolucionário do movimento negro, mas não foi capaz de perceber sua relação com a estrutura econômica.

Noutro século, o negro americano cantava infortúnios através da lânguida e morna música dos "spirituals". Neste século, passou ao protesto musical do nervosismo do jazz-band. Criou-se o Poder Negro, cujos cantores sabem que a opressão do negro é um fato econômico. Para a abolição se torna necessário mexer nas raízes econômicas do atraso social do negro. Observe-se que esse Poder Negro baniu indiscriminadamente os brancos do seu convívio. É que a luta de negros contra brancos e vice-versa tem fundamentos mais sérios, que não se situam na simples cor da pele. O negro, antes de tudo, vive numa até hoje inevitável exploração de operário não-qualificado e é muito difícil mudar o coração da massa humana, acostumada a ver o preto no seu lugar distante e subserviente.

Vivien Leigh interpretou a sulista bonita e graciosa da Geórgia vivendo a Scarlett O'Hara de "...E o vento levou", uma história da escravatura. A autora do livro, fidelíssima aos episódios históricos, não mostrou ódios raciais no romance que foi mais vendido do que a Bíblia, quando apareceu. Pelo contrário. Apresenta o negro em convivência afetiva o branco. Scarlett, a menina branca, estima, como aos seus, a mucama, que lhe dedica, por igual, amizade e afeição. Por que o ódio posterior? O ódio resultou da abolição e dos problemas econômicos daí advindos, e um destes está na mão-de-obra negra, que a sociedade capitalista inutiliza porque não pode legislar contra si mesma.

Vale lembrar Vivien Leigh, a menina maravilhosa de "...E o vento levou". Ela fez com Clark Gable, Olivia de Havillaand, Leslie Howard, Thomas Mitchel, o mais belo filme sobre a história dos negros americanos. Um filme imortal, feito pela generalidade de Selznick, em 1939, e que não perdeu a oportunidade, nem a perderá. O estudioso encontrará nele os fundamentos desse propalado preconceito racial, inexistente. Há, sim, um problema econômico.

A. Tito Filho, 07/05/1988, Jornal O Dia.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

EXÉRCITO

A 24 de maio as forças militares do 25º Batalhão de Caçadores, ora sob o comando do Coronel Aramir Bezerra Pinto, comemoraram com solenidades cívicas o Dia da Infantaria, arma de que é patrono o Brigadeiro Antônio Sampaio. Recordou-se na data ilustre a trajetória das tropas federais no Piauí, desde que se começou a organizar o Exército Brasileiro.

Com a transferência da capital para Teresina, em 1852, com a nova sede do governo veio o Batalhão de Infantaria de 1ª Linha, alojado numa casa oferecida pelo mestre-de-obras João Isidoro França, na praça hoje Deodoro, passando aos barracões de palha do Campo de Marte. Só em 1855 se concluiu o quartel antigo. Essa tropa combateu no Paraguai e no seu lugar Teresina recebeu, em 1871, a Companhia de 1ª Linha.

A República esteve precedida da célebre Questão Militar, resultado de incidente entre Coronel Cunha Matos e o deputado Coelho de Resende e os fatos tiveram início com o relatório do primeiro contra o comandante da tropa no Piauí.

Em janeiro de 1890 o Piauí recebia novo contingente do Exército, o 35º de Infantaria, o batalhão querido na cidade, como escreveu o piedoso padre Joaquim Chaves, e que participou de cruéis batalhas contra os revolucionários do Sul, em 1892, e depois contra Canudos em 1897. Nesta última expedição morreram 338 homens. A força foi transferida para São Luís em 1900.

Ao depois houve na capital piauiense a presença da 1ª Companhia de Caçadores do Exército e a 1ª Companhia Isolada de Caçadores do Exército. Só em 1918 criou-se o 44º Batalhão de Caçadores, organizado por Domingos Monteiro, que passou a denominar-se 25º Batalhão de Caçadores, cujo quartel atual se inaugurou em dezembro de 1925.

Esse Batalhão tem participado de episódios históricos significativos. Combateu a Coluna Prestes, que havia sitiado Teresina, prendendo-se o capitão Juarez Távora, famoso líder rebelde. Apoiou, com exceção de vários oficiais, os revolucionários de 1930. Esteve sob o domínio do cabo Amador Vieira da Carvalho, que prendeu autoridades, inclusive o interventor federal. Retomou-o brigadeiro João Martins de Morais, com sargentos e praças. Ocupou posições no movimento paulista de 1932. Atuou na II Grande Guerra. Ao longo dos anos, deliciou Teresina com as celebres retretas de sua banda de música, nos coretos das praças públicas. Tem feito parte dos grandes momentos cívicos do Piauí e sempre cooperou no processo educacional para as colônias de férias. Fator de ordem e tranqüilidade social tem sido a dedicada corporação.

Em nome das tropas militares nacionais aquarteladas em Teresina, governaram o Piauí, proclamada a República, os oficiais Reginaldo Nemésio de Sá, Nelson Pereira do Nascimento e João de Deus Moreira de Carvalho (Junta de Governo). Em 1890, Floriano Peixoto determina que o comandante do 35º Batalhão de Infantaria, João Domingos Ramos, assuma o governo, o mesmo se verificando em 1931 com o comandante do 25º BC, Joaquim Lemos Cunha, por ordem de Getúlio Vargas.


A. Tito Filho, 07/06/1988, Jornal O Dia.

domingo, 12 de dezembro de 2010

CARCAMANO

Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, no Novo Dicionário da Língua Portuguesa inclui carcamano como brasileiríssimo. E define a palavra: "Alcunha jocosa que se dá aos italianos em vários estados; latacho, macarrone". Escreve mais que no Maranhão vale "a alcunha que se dá aos árabes em geral". No ceará, "vendedor ambulante de fazendas e objetos de armarinho". Antônio Joaquim de Macedo Soares acentua que carcamano é o "italiano de baixa classe". Nascentes diz apenas que carcamano corresponde a italiano, mas explica: "Uma etimologia popular diz que o vocábulo vem do conselho de um italiano a um filho que o ajudava na casa de negócio. O filho fazia honestamente a pesada. O pai então, quando o equilíbrio estava prestes a estabelecer-se, aconselhava: carca la mano (calça a mão). Se non e vero..." F. A. Pereira da Costa cita o vocábulo na qualidade de italiano, assim depreciativamente chamado. E anota dito do povo de Pernambuco: "Mama em grosso o carcamano, e abusa da bonhomia do povo pernambucano". O saudoso R. Magalhães Júnior explicou: "Denominação pejorativa dada aos imigrantes italianos, em razão das fraudes, atribuídas a estes, em suas quitandas e açougues, ao pesarem os alimentos, vendidos a quilo, ajudando a concha da balança a descer com o impulso da mão. De calçar a mão teria surgido a forma italianizada de carcamano, corrente não só no Brasil como na Argentina, onde Juan Paulista Alberdi a usou, num dos seus livros, em que dizia serem reverenciados, nos altares argentinos, alguns santos carcamanos, já ricos e portanto poderosos".

Em Teresina, carcamano sempre designou, de modo pejorativo, os árabes. Veja-se o depoimento de Salomão Chaib, médico de nomeada, em discurso de posse na Academia Piauiense de Letras: "Meu pai aqui chegou vindo de uma civilização milenar, duma terra sem horizontes. Ansiava por liberdade. Seu povo estava escravizado e colonizado impiedosamente, levado a servir, sob a bandeira de nação odiada, à luta pela grandeza e progresso de seu próprio algoz. Jurou ele que seus filhos não nasceriam colonos, nasceriam livres, numa coletividade generosa e bela, que lhes desse paz e trabalho. Foi assim que veio moço para o Brasil. E para o Piauí, que ajudou e honrou, trabalhando de sol a sol, viajando a pé pelos sertões agrestes, vendendo, aprendendo a língua, fazendo amigos e armando a nova pátria. Aqui se casou. Naturalizou-se brasileiro. Constituiu família. Nasceram-lhe os filhos. A pátria de seus filhos era a sua pátria".

E logo a seguir: "Guardo da infância despreocupada, dos primeiros instantes do convívio com outras crianças do grupo escolar, a observação de uma delas: CARCAMANO NÃO TEM BANDEIRA".

Prossegue o orador: "Em casa dei a noticia do acontecimento a meu pai. E ele, com profunda tristeza, explicou-me: A SÍRIA TEM BANDEIRA, MAS ESTÁ OCUPADA POR PAÍS ESTRANGEIRO".


A. Tito Filho, 07/12/1988, Jornal O Dia.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

BONS LIVROS

Conhecemos Orgmar Monteiro no velho Liceu Piauiense, educandário famoso de Teresina - e nele convivemos alguns anos, em busca do canudo das chamadas humanidades. Era de inteligência desenvolvida e bom raciocínio. Depois, no encontramos como funcionários públicos federais no Ministério da Agricultura, ainda no Piauí - cada qual no setor das suas funções: administrativas, as nossas, técnicas as dele, já preocupado com estudos e, ensinança a respeito do cajueiro.

Na década de 60 seguimos outros rumos. Perdemos de vista o companheiro. Admitimos ambos vôos mais altos. Orgmar buscou os caminhos do mundo, fez visita a brancos, amarelos e negros, enriqueceu a vida de múltiplas experiências alheias, no regalo turístico e na observação de hábitos, costumes e riquezas de povos diferentes.

Em 1985 editou-se Calendário Telúrico, que a Academia Piauiense de Letras distribuiu, trabalho por ele concebido e escrito sustentando sérios conhecimentos sobre sistemas de divisão do tempo - livro sobremodo educativo e que o colocou entre os estudiosos da cultural geral.

Contam-se nos dedos as repúblicas brasileiras. Houve a de Deodoro, Floriano e outros cidadãos. A Velha. Em seguida, a Primeira nova, que Vargas instituiu nos idos das quarteladas tenentistas de 1930. Depois a República Constitucional de Vargas, pavio curto, de 1934 a 1937. E veio mais uma do mesmo risonho feiticeiro gaúcho, que promoveu do próprio palácio presidencial, ajudado de alguns generais, de começo em 1937 e concluída aos 29 de outubro de 1945, data em que os tanques ocuparam a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro e os donos desses veículos mandaram que o ditador descansasse, numa fazenda de pastoreiro do Rio Grande do Sul. Cumpriu-se o ditame da fantasiosa e forte carta constitucional do tempo, entregou-se o governo ao Supremo Tribunal, simulando-se a continuidade republicana, e deram-se eleições. No ano do Senhor de 1946 estreou mais uma República, cuja liquidação se promoveu em 1961. Quantas? A deodoriana, a 1ª Getuliana (1930), a 2ª Getuliana (1934), a 3ª Getuliana (1937), a 4ª ou pós-ditatorial (1946). E a 5ª, a República Parlamentarista, rápida, com sabor de pantomima - destruída por plebiscito em 1963. A partir de 1964, a 6ª - a República Fardada, que se finou a de março de 1985 com a posse de um poeta e prosador sobre gente e cousas maranhenses no comando da 7ª República - estudada em 3 volumes por Orgmar Monteiro, nos mais variados aspectos e angustiantes problemas. Expõe-lhe as feridas, uma a uma, oferece os pós mágicos da cura certa. Revela que o Estado do Brasil detém o monopólio da violência contra o homem roubado. É necessário que se pratiquem atos de coragem: não permitir que a inflação continue a corroer a justa distribuição da riqueza; educar para o bem; enfrentar a inatualidade cultural e econômica brasileira.

Orgmar publicou cinco volumes sobre a antiga Teresina, seu constante xodó. E depois morreu em São Paulo - o velho coração parou para sempre.


A. Tito Filho, 07/09/1988, Jornal O Dia.